Como o prosaico se transforma em arma
Miguel Castelo Branco
Tive hoje acesso a
documentação vária existente no Arquivo Histórico Diplomático, tratando de
questões ditas menores da política externa portuguesa no ano de 1967, momento
particularmente sensível em que as posições defendidas por Portugal sobre o
Ultramar eram objecto de crescente hostilidade por parte da comunidade
internacional.
Em Dezembro de 1966, uma moção
aprovada pela Comissão de Curadorias da ONU reiterava prévias acusações contra
Portugal pelo incumprimento da Carta das Nações Unidas a respeito do direito à
autodeterminação dos povos das províncias africanas. Dessa decisão aprovada por
maioria, desenvolveu-se na imprensa europeia e norte-americana intensa
campanha, acompanhada de actos de protesto, seminários e abaixo-assinados
exigindo o corte imediato da assistência militar a Portugal por parte dos
restantes membros da OTAN.
Em Março de 1967, informavam
as embaixadas portuguesas em Londres, Paris, Bona e Washington que os
argumentos portugueses já pouco acolhimento ganhavam junto das chancelarias,
posto as opiniões públicas estarem convencidas que Portugal exercia a soberania
sobre os povos africanos de forma atrabiliária, ali cometendo atropelos aos
direitos humanos, negando a cidadania e praticando a segregação racial. Por
todos os meios se tentou esclarecer, por comunicados e conferências de
imprensa, que Portugal não era a África do Sul, que em Angola e Moçambique
estava em curso uma profunda mudança envolvendo as populações dos territórios.
Em vão, pois a imprensa não só boicotava tais iniciativas, como redobrava em
ataques e denúncias.
Em Abril de 1967, realizou-se
em Viena um dos mais mediáticos eventos musicais da época. Então, o festival da
Eurovisão era seguido e discutido por praticamente todos os europeus. Tal
espectáculo, que hoje já nada representa, gerava grande expectativa e a
imprensa dedicava-lhe honras de primeira página. Para esse concurso, Portugal
enviou o angolano português Eduardo Nascimento. Voz poderosa e grande simpatia
pessoal, homem educado e poliglota, a sua prestação provocou um sismo.
Escrevia para Lisboa um
embaixador de Portugal que Eduardo Nascimento sobre o palco tivera tal efeito
que, de súbito, se calaram todos os protestos e boicotes contra as nossas
representações diplomáticas.
Eis como uma simples cançoneta
pode valer todas as campanhas de propaganda e todas as operações militares.
Eduardo Nascimento fez nessa noite o que toda a nossa diplomacia não conseguira
durante anos: demonstrou que a questão ultramarina portuguesa não era simples e
que havia quem a soubesse defender com a sua voz. Nascimento merecia uma
medalha, mas hoje ninguém dele se lembra.
Título e Texto: Miguel Castelo Branco, Combustões,
30-11-2013
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