quinta-feira, 28 de novembro de 2013

A crise fez o hábito

André Veríssimo 

Três anos de austeridade mudaram-nos. Forçados pela necessidade, os portugueses adaptaram-se. Criaram novos hábitos e recuperaram velhos. Tornaram-se felinos na caça a promoções e passaram a coleccionar folhetos de supermercado e cupões com fervor religioso. Voltaram à marmita e à casa dos pais.
Descobriram que a casa não tem de ser própria, arrenda-se a dos outros. Que os carros não duram apenas cinco anos, sobrevivem bem mais. E que os usados também são carros. Trocaram as auto-estradas pelas vias secundárias. O ginásio pela corrida na rua. O cinema pelo cabo. O restaurante pelo prazer dos jantares em casa. A carne pelos saudáveis vegetais.

Aprenderam a usar as redes sociais para apanhar boleia e poupar nas viagens à terra. Para lançar um pequeno negócio que alivie o sufoco do desemprego. Descobriram que ganhar pó não é uma inevitabilidade da tralha que têm em casa – é possível ganhar dinheiro vendendo-a pela Net.

Os pais têm menos filhos, e os que têm tiraram-nos do colégio e devolveram-nos à escola pública. Descobriram que há bons produtos de marca branca. E que se vende gasolina dessa cor. A mal, perceberam que o crédito não é fácil. Mas também a reclamar e a regatear pelos serviços com ameaças de mudar quando não lhes baixam o preço.

Habituaram-se a fazer contas à vida. Por causa do Orçamento do Estado, viram-se obrigados a fazer o da Casa. Tornaram-se mais poupados, mas também mais solidários.

A crise empobreceu-nos. Todo este engenho nasceu da necessidade. Mas fez-nos melhores consumidores. Mais atentos e informados. Mais cientes dos nossos direitos.

Melhores do que esperava a troika ou o Governo. O país teve uma quebra histórica no consumo privado e um crescimento da poupança que deixou perplexo o primeiro-ministro. Mas com isso equilibrou o défice externo também mais depressa do que se antecipava.

As estatísticas mostram que vamos saindo do cinto de forças. Mostram que nem só de exportações se fez a recuperação da economia nos dois últimos trimestres. O principal motor foi mesmo o consumo interno. Até as vendas de automóveis já crescem. Mas pelo que se vislumbra do futuro próximo, os novos hábitos vão perdurar.

O Orçamento do Estado para 2014 mantém o cerco às famílias. E aperta-o ainda mais para os trabalhadores e pensionistas da Função Pública. Nos anos seguintes, a margem para o aumento do rendimento pelo alívio dos impostos será estreita. O país continuará vergado pelo fardo dos juros da dívida pública acumulada nos anos de despesismo.

Mas com a mesma rapidez que nos convertemos à frugalidade, vamos abandoná-la quando pudermos. É humano. Nesse dia, em que o País voltar aos antigos padrões de consumo, é bom que o modelo de crescimento seja outro. Mais assente nas exportações e menos no consumo interno. Caso contrário voltará o desequilíbrio da balança corrente, o insustentável aumento das dívidas ao exterior. E a marmita.
Título e Texto: André Veríssimo, Jornal de Negócios, 28-11-2013

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Um comentário:

  1. É extremamente interessante quando se lê um artigo como este, verificar que o que eu tenho visto no facebook, nos membros da população Aerus que o frequenta.
    Exatamente o oposto a este artigo. Porque será ?
    Continuam as festas, continuam os encontros , continuam os churrascos,continuam as viagens
    enfim me faz parecer de que a ficha ainda não caiu
    Estou errado ? É só verificar
    E ai quando nos deparamos com artigos como este, a coisa toma um contorno simplesmente hilário.
    José Manuel

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