terça-feira, 26 de novembro de 2013

Calçada da Ajuda

Helena Matos
Pela hora a que este jornal começa a ser lido, há 38 anos, Jaime Neves, à frente de uma força de comandos, subia a Calçada da Ajuda. Civis armados barricados tentavam evitar a entrada dos comandos nos quartéis de Cavalaria 7 e da Polícia Militar.

Jaime Neves
Os bancos estavam fechados e vigorava o recolher obrigatório. Em Lisboa só se podiam publicar jornais desportivos. As mercearias, essas aproveitavam para fazer negócio pois, como é habitual nestes sobressaltos da História, entra-nos um acendrado apetite que acreditamos satisfazer à base de salsichas e atum. Não será uma atitude grandiloquente mas é sem dúvida muito sábia. Na véspera tivera lugar o golpe a que agora chamamos 25 de Novembro e que, como todos os golpes, começou muito antes e só acabou alguns dias depois, mais precisamente a 28, quando a Base de Tancos se rendeu, os para-quedistas choraram de novo e os cantores que mais do que cantar queriam brincar às guerras civis despiram as fardas militares, regressaram aos espectáculos onde as balas são apenas uma rima.

Podem contar-se milhares de histórias sobre o que aconteceu em Novembro de 1975 em território português - talvez o mês mais interessante da nossa História recente - o que não se pode dizer é que a esquerda, e muito particularmente o PCP, foram derrotados nesse dia. Digamos que em Novembro de 1975, entregue em Angola "o poder ao MPLA" como exigiam recorrentemente milhares de manifestantes em Lisboa, trocámos a agitação do socialismo revolucionário de uma frente de esquerda político-militar pela tranquilidade do socialismo institucional da Constituição e do aparelho de Estado.

Sinceramente todos ganhámos com isso a começar pela esquerda radical que teria acabado a matar-se a si mesma nas suas guerras internas ou a ser massacrada pelo povo; os militares desembaraçaram-se dessa multidão de jornalistas e jovens que procuravam um Che Guevara em cada esquina do Ralis. O País podia finalmente descansar da luta contra os golpes fascistas e espiões da CIA (um dos grandes mistérios de então e da actualidade reside no facto de apenas se avistarem os agentes e as malfeitorias dos serviços secretos norte-americanos.) Já se podia ser patrão sem se ser considerado explorador. Os ministros já conseguiam entrar nos respectivos ministérios sem depararem com comissões várias que além de os declararem incompetentes ainda os ameaçavam com o anátema do reaccionarismo. E, não menos importante, nas lojas voltava a haver bacalhau e calças de ganga de marca e na televisão a hegemonia dos desenhos animados dos países de leste não chegava ao fim mas admitia-se que as crianças precisavam de rir com os produtos alienantes do capitalismo.

Tudo passou a ser possível desde que naturalmente não se pusesse (nem ponha) em causa a superioridade moral do socialismo em geral e da esquerda em particular: intelectual de esquerda, católico progressista, cidadão de causas e activista são algumas das designações que ao longo dos anos passaram a conferir de imediato aos ungidos com tais epítetos um grau superior de bondade e clarividência. A nossa linguagem adaptou-se a esta dupla forma de julgar: Pinochet é um criminoso; Fidel um líder carismático. Wyriamu foi um massacre; a descolonização uma desilusão. Um português de esquerda escolhido para um cargo internacional é uma honra e o seu desempenho sempre acima de notável; se for de direita não passa de um moço de recados deste e daquele.

Politicamente o socialismo tornou-se uma espécie de padrão único de pensamento sobretudo desde que socialismo passou a significar mais e mais investimento público; mais e mais legislação a regulamentar tudo o que economicamente existe e está para existir; mais e mais intervenção do Estado na vida quotidiana. Discordar disto e afirmar por exemplo que o salário mínimo contribui para aumentar o desemprego (sobretudo dos jovens) ou que os suíços tomaram um decisão acertada ao votar contra a limitação dos salários dos gestores é um passaporte para quem assim fala se tornar num pária.

Podia e devia continuar a dar exemplos mas já não tenho mais espaço e francamente falta-me a paciência. Afinal não vivemos todos tão bem há 38 anos fazendo de conta que o socialismo é o sistema mais justo e mais humano? Só tivemos de pedir ajuda para comer três vezes, por sinal aos mesmos que depois mandámos e mandamos lixar.

Entretanto, pela hora a que em 2013 este jornal se torna passado, no anoitecer do dia 26 de Novembro de 1975, três homens tinham morrido na Calçada da Ajuda: dois eram comandos, um da polícia militar. Hoje tudo isso parece estar lá tão longe. Mas é desse país de Novembro de 1975 que vimos. E é a ele e às suas contradições que voltamos em cada crise.
Título e Texto: Helena Matos, Diário Económico, 26-11-2013

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