O PS sofre do mesmo mal dos seus parceiros europeus: não tem programa
alternativo para estes tempos complexos e de escassez relativa.
Será que Portugal pode sair da
crise? Em teoria, pode. Se as regras do euro forem outras, nomeadamente se a
zona euro ficar com parte da nossa dívida e se o Banco Central Europeu começar
a imprimir euros sem limites. Se, ao mesmo tempo, a Europa nos oferecer um
Plano Marshall. Se nos deixarem flexibilizar as metas do défice. E, claro, se
os alemães desatarem a consumir mais.
Esta listagem não foi
imaginada por mim. Resulta da conclusão do longuíssimo artigo que, ao longo de
uma semana, dois economistas muito influentes na área socialista – o antigo
ministro Manuel Pinho e o possível futuro ministro Manuel Caldeira Cabral –
publicaram no Diário de Notícias. Como eles dizem, “se tudo isto acontecer,
então, em teoria, é possível”.
Tenho dificuldade em imaginar
uma tão clara declaração de impotência. Quase todas as condições que colocam
para a salvação de Portugal estão fora do nosso alcance. São apenas desejos,
porventura desejos piedosos, mas seguramente irrealistas – sobretudo agora, que
conhecemos o acordo de coligação CDU/SPD. Mais ao menos como eu dizer que
também sou capaz, “em teoria”, de saltar por cima do Pulo do Lobo, mas desde
que a gravidade na zona do Guadiana fosse a mesma da Lua. E o problema não é
dizer que se vai lutar por aquele conjunto de objectivos na União Europeia – o
problema é fazer depender a solução dos nossos problemas de perdões, subsídios
e inflação. É uma posição que sintetiza bem a dificuldade da esquerda em
apresentar alternativas viáveis, e mobilizadoras, para os tempos que correm.
Não é apenas um problema português.
Com a sinceridade própria de
um jornalista, Vicente Jorge Silva ia directo ao problema na entrevista que deu
ao jornal i: “a situação é terrível a nível da esquerda”, a tradição onde ele
se inscreve, a da social-democracia “acabou por ser asfixiada pelo neoliberalismo”.
Ilustrava com exemplos de França, do Reino Unido, de Espanha, de Itália, também
da Alemanha. Francisco Assis, com sinceridade, mas com o pudor próprio de quem
é também um dirigente político, descreveu essa situação neste jornal como sendo
“a tentativa de resistência de um voluntarismo social-democrata escassamente
afirmativo”.
O que estas posições permitem
perceber é que os problemas do nosso PS não são muito distintos dos problemas
dos outros partidos socialistas e sociais-democratas e que António José Seguro
é muito menos culpado de cinzentismo do que é costume acusá-lo. Também Hollande
é, de certa forma, menos culpado do que se imagina pela desilusão que gerou –
boa parte da culpa está nas ilusões que se alimentaram acerca do que poderia
representar uma maioria socialista em França. A principal dessas ilusões é a de
que a austeridade corresponde apenas a uma escolha política, que deriva de uma
valorização moral e que apenas existe para ser “punitiva”. Essa ilusão permite
encher todas as “aulas magnas” que se quiser, mas será fatal para as
expectativas do país no momento em que houver uma mudança de ciclo político,
algo que ocorrerá mais cedo ou mais tarde. Mais: como escrevia Francisco Assis,
de nada serve à esquerda “uma esquerda puramente proclamatória, dada a uma
certa altivez e escassamente preocupada com o esforço de compreensão da
realidade”.
O que Assis não consegue
esclarecer é como é que o seu PS passa, e cito-o, da “evanescência de um
discurso frágil” para “a consistência de uma alternativa sólida”. É que esse é
que é o verdadeiro problema de Seguro, sendo que não é muito diferente dos dilemas
dos seus parceiros além-fronteiras: a esquerda social-democrata e socialista
vive um problema de programa (como governar em tempos de escassez relativa?) e
com um problema de base eleitoral (como voltar a ser um partido de base
popular?).
Uma parte deste duplo problema
foi muito bem descrita por Jorge Almeida Fernandes no PÚBLICO do passado
domingo, quando lembrou que “a social-democracia entrou em declínio no fim dos
anos 1970, quando se começou a romper a aliança entre as novas classes médias
urbanas e a classe operária”. Essas novas classes médias tomaram conta dos
velhos partidos de inspiração trabalhista, e estes foram gradualmente mudando a
sua própria natureza, passando a preocupar-se mais com os problemas das
minorias e com os direitos de “nova geração” do que com os dramas das suas
antigas bases operárias. Já essas classes populares foram resvalando
progressivamente para os braços de populistas de direita e de esquerda.
A razão por que isso aconteceu
é fácil de entender: a promoção de vigorosas políticas redistributivas era a
marca de água da social-democracia, mas essas políticas necessitavam de um
forte crescimento económico e de uma demografia favorável; quando o crescimento
económico do pós-guerra se começou a esgotar na década de 1970, esse modelo
entrou em crise por todo o lado, da rica Escandinávia à aspirante Grécia.
Thatcher e Reagan não nasceram do nada e não são apenas frutos de leituras
apressadas de Hayek ou Friedman, antes vieram responder a problemas existentes,
protagonizando uma mudança de rota tão inevitável como fora, quatro décadas
antes, a mudança de rota em direcção ao keynesianismo.
De resto, e ao contrário do
que reza a propaganda, Thatcher não desmantelou o Estado social inglês, antes o
reformou, para impedir que continuasse a crescer de forma insustentável. Como
se mostra num livro recente – O Futuro do Estado Social, de Filipe Carreira da
Silva, da colecção de ensaios da FFMS –, o peso do Estado social no PIB do
Reino Unido era, no final do mandato da “Dama de Ferro”, idêntico ao que se
registava no início do seu consulado. Mesmo no Portugal em crise e com a
austeridade que conhecemos, o peso das prestações sociais no PIB não está a
diminuir: era de 22% em 2009, deverá ficar nos 23,2% em 2013.
Em países como o nosso, onde a
riqueza nunca foi muita, onde o Estado social chegou tarde e o crescimento
acabou cedo, a manutenção do modelo redistributivo coloca problemas ainda mais
complexos à esquerda socialista (o resto da esquerda verdadeiramente só
protesta, não corre o risco de governar). Por um lado, identifica-se com a
política redistributiva e tem como base eleitoral uma classe média que passou a
depender dessa mesma política; por outro lado, deixou de conseguir aumentar as
receitas dos impostos e, assim, deixou de conseguir pagar essas políticas.
Basta pensar que em Portugal as prestações sociais representavam apenas 13% do
PIB em 2000, o que significa que o seu peso na riqueza nacional quase duplicou
em pouco mais de uma década. Foi neste quadro que as políticas redistributivas
deixaram de se basear no aumento da carga fiscal (a economia estava exaurida),
para passarem a depender de uma dívida crescente (tornada mais acessível com a
adesão ao euro).
O sonho de todos os
socialistas é que o crescimento regresse e se libertem deste pesadelo. O seu
dilema é que não conseguem imaginar uma forma diferente de crescer senão pela
via de estímulos públicos, sendo que, enquanto houve dinheiro para esses
estímulos – e houve em abundância até 2008/2009 –, isso não se traduziu em mais
crescimento, apenas em mais dívida. É por isso que suspiram por um Plano
Marshall sem entenderem que ficaríamos para sempre dependentes de subsídios
externos. É também por isso que têm dificuldade em entender os sinais que
começam a aparecer de alguma reversão do ciclo económico, pois este acontece
sem reversão da austeridade, o que não encaixa na sua forma de pensar
estadocêntrica.
Não surpreende, pois, que
olhemos para o PS e, independentemente do que disser Seguro, ou outro no lugar
dele, saibamos por intuição segura que as suas promessas mais simpáticas teriam
o mesmo destino das de Hollande, ou das do SPD alemão, ou das do PSOE espanhol:
o choque com a realidade torná-las-ia obsoletas no dia da tomada de posse de um
novo Governo. O que surpreende é que ainda exista quem pense que, “se o PS
fosse um bocadinho mais activo”, mais à moda da Aula Magna, “tinha 90% com
certeza”. Não tinha, de certeza.
Título e Texto: José Manuel Fernandes, Público,
29-11-2013
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