Lula não tem nem
nunca teve receio de ser e de parecer politicamente obsceno. A única coisa
feia, para ele, é perder eleição. O resto vale. Nesta quinta, falando a
prefeitos petistas no ABC, defendeu seus companheiros mensaleiros — por que
não? — e mandou ver:
“A resposta que a gente vai dar para eles é garantir o segundo mandato da companheira Dilma Rousseff. E se, em algum momento, faltar argumento para dizer por que que a Dilma tem que ter um segundo mandato, vocês falam: ‘porque o Lula foi melhor no seu segundo mandato, e ela vai ser melhor no segundo mandato’”.
“A resposta que a gente vai dar para eles é garantir o segundo mandato da companheira Dilma Rousseff. E se, em algum momento, faltar argumento para dizer por que que a Dilma tem que ter um segundo mandato, vocês falam: ‘porque o Lula foi melhor no seu segundo mandato, e ela vai ser melhor no segundo mandato’”.
Em primeiro lugar,
há uma mentira factual aí. O segundo mandato de Lula foi pior do que o primeiro
em muitos aspectos. Mas isso é o de menos agora. Ao fazer essa afirmação, este
senhor busca transformar a condenação do mensaleiros num ativo eleitoral.
Para ele, a reeleição de Dilma valeria, então, como uma absolvição de
criminosos.
Meus caros, é o
feitiço do tempo! A minha primeira coluna na VEJA foi publicada na edição de 6
de setembro de 2006. Sabem como se chamava? “Urna não é tribunal; não absolve
ninguém”. Qual era o ponto? Lula estava prestes a ser reeleito. O PT já havia
posto na rua a tese de que acusar a existência do mensalão era um “golpe das
elites e da mídia”. Como evitar o “golpe”? Votando no PT. Sete anos depois, a
mesma coisa. Agora é a reeleição de Dilma que funcionaria como uma absolvição.
Vivemos o Dia da Marmota petista. Notem que o texto poderia ter sido escrito há
dez minutos, inclusive no que diz respeito à oposição, que diminuiu
muito em tamanho. Reproduzo trechos daquele artigo. Voltarei para encerrar.
Um novo refrão anda “nas cabeças, anda nas bocas”, poderia dizer o lulista Chico Buarque: a possível reeleição do presidente absolve os petistas de todos os seus crimes. As urnas fariam pelo PT o que o ditador soviético Josef Stalin fez por si mesmo: apagar a história. É um embuste. A vantagem do presidente se deve à economia, à inépcia e inapetência das oposições, às políticas assistencialistas, tornadas uma eficiente máquina eleitoral, e à ignorância, agora a serviço do tal “outro mundo possível”. O povo é, sim, um tipinho suspeito, mas não vota para livrar a cara dos marcolas da ideologia.
Um novo refrão anda “nas cabeças, anda nas bocas”, poderia dizer o lulista Chico Buarque: a possível reeleição do presidente absolve os petistas de todos os seus crimes. As urnas fariam pelo PT o que o ditador soviético Josef Stalin fez por si mesmo: apagar a história. É um embuste. A vantagem do presidente se deve à economia, à inépcia e inapetência das oposições, às políticas assistencialistas, tornadas uma eficiente máquina eleitoral, e à ignorância, agora a serviço do tal “outro mundo possível”. O povo é, sim, um tipinho suspeito, mas não vota para livrar a cara dos marcolas da ideologia.
O voto do ignorante
vale menos? Não. Mas também não vale mais. Nem muda a natureza das
instituições. E não absolve ninguém, tarefa que continuará a ser da Justiça. A
vacina contra o autoritarismo virótico de quem pretende cair nos braços do povo
para ser absolvido de seus crimes está em Origens do Totalitarismo, da
pensadora judia-alemã Hannah Arendt. Aprende-se ali que não devemos permitir
que os inimigos da democracia cheguem ao poder, negando-nos, uma vez lá, em
nome dos seus princípios, as liberdades que lhes facultamos em nome dos nossos.
A tese da
absolvição serve ao propósito de pautar a imprensa com uma agenda virtuosa. O
programa de governo do PT prevê, diga-se, o incentivo oficial à “mídia
independente”. Em lulês, significa financiar, com o dinheiro dos desdentados, a
sabujice disfarçada de jornalismo. A prática já está em curso. Felizmente, a
democracia é um regime legitimado pela maioria, mas sustentado pelas elites, de
que a imprensa faz parte. As esquerdas se arrepiam diante dessa afirmação.
Entendo.
A alternativa
histórica às elites esclarecidas é o déspota esclarecido. Se, no passado, ele
podia ser um homem, no presente, tem de ser um “partido”, um ente de razão com
poder de se sobrepor às leis, embora não dispense o demiurgo. Lula é o Tirano
de Siracusa (aquele que Platão tentou converter à filosofia, coitado!) dos intelectuais
petistas. A decana do delírio é a filósofa Marilena Chaui. No livro “Simulacro
e Poder: uma Análise da Mídia”, ela afirma que o discurso da direita se
sustenta no senso comum. À esquerda caberia desmontá-lo para criar uma “nova
fala”.
Marilena é a Tati
Quebra-Barraco da academia. Seu funk filosófico apela à barbárie, mas tem o
charme da resistência, a exemplo de certas canções de Chico – Lula é o “meu
guri” que chegou lá. Ela ressuscita a tara do marxismo vagabundo de que o senso
comum existe como falsa consciência, a ser superada pela iluminação de uma
razão transformadora. Conclui-se que o povo, deixado à própria sorte, vai para
a direita. Se educado pela militância, pode atravessar os umbrais da liberdade.
Na China de Mao Tse-tung, 70 milhões morreram sob o efeito dessa luz.
Mas eu estou com
ela. E com Shakespeare. Também acho que o povo não é de confiança. O bardo diz
o que pensa no discurso de Marco Antônio diante do corpo de Júlio César,
assassinado havia pouco. Leiam a peça ou vejam o filme dirigido por Joseph L.
Mankiewicz – um judeu de origem alemã nascido nos EUA. Um minicoquetel de
figuras retóricas transformou o tirano assassinado num herói, e o herói
republicano, Brutus, num tirano. César era intuitivo, sentimental e tolerante
com os de baixa estirpe; Brutus era tímido, racional e ensimesmado.
Açulada pelos
conspiradores, a massa primeiro tripudia diante do corpo inerme; chamada por
Marco Antônio à sua natureza amorosa e primitiva, adora a memória do ditador.
Afinal, “quando os pobres deixavam ouvir suas vozes lastimosas, César derramava
lágrimas”, discursa Marco Antônio. Ocorre-me que o rechonchudo Getúlio Vargas
foi o nosso César shakespeariano, e o magricela Carlos Lacerda, o nosso Cássio,
o chefe dos conspiradores. Antes de seu trágico fim, César havia dito a Marco
Antônio: “Quero homens gordos em torno de mim, homens de cara lustrosa e que
durmam durante a noite. Ali está Cássio com o aspecto magro e esfaimado. Pensa
demais. Tais homens são perigosos”. O mal está no pensamento.
Se eu, Marilena e
Shakespeare não confiamos no povo, onde está a diferença? O dramaturgo o trata
como o vulgo instável de sempre, e Marilena quer educá-lo segundo os rigores de
uma razão supostamente iluminista; ele só passará a ser uma categoria relevante
quando acordar de seu sono e aderir a uma utopia finalista. Trata-se de um
embuste utópico em nome do qual se institui o presente eterno na política, que
passa a ser um jogo sem regras previamente definidas justamente para que
qualquer conveniência possa ser considerada uma regra do jogo.
Quando, para
defender o PT, um ator diz que a política pressupõe enfiar a mão na sujeira ou
um músico dá um pé no traseiro da ética, ambos estão pondo em termos muito
práticos o que a intelligentsia petista urdiu como teoria de poder: a superação
do senso comum (de direita?), segundo o qual não se deve roubar dinheiro
público. A “nova fala” do barraco de Marilena acena então com a pior de todas
as tiranias: aquela exercida pelos servos.
E o “meu” povo? Ele
é a fonte legitimadora das instituições democráticas e, portanto, tem de ser
protegido de si mesmo se atentar contra os códigos que guardam seus direitos –
e isso inclui absolver ladrões. Esse é, aliás, o aparente paradoxo das
sociedades modernas, em que vigora o estado de direito: a cultura da
reclamação, da permanente mobilização, da constante reivindicação de direitos
resulta em grupos de pressão que querem impor a sua agenda, ainda que o preço
seja o fim da universalidade das leis. A esquerda, faceira, torna-se porta-voz desse
novo humanismo de tribo. O paradoxo é aparente porque uma democracia não proíbe
a existência de tais movimentos, mas também não cede. E seu limite é a lei, sem
as “acomodações táticas” de Márcio Thomaz Bastos.
(…)
se é verdade que o senso comum é “de direita”, como quer Tati Marilena, a voz dominante do establishment, hoje, foi sequestrada pela esquerda. Esta tem projeto de poder, produz valores e ideologia; os democratas, que “eles” chamam de “direita”, acreditam que basta conquistar o comando, sem fazer a guerra cultural.
(…)
se é verdade que o senso comum é “de direita”, como quer Tati Marilena, a voz dominante do establishment, hoje, foi sequestrada pela esquerda. Esta tem projeto de poder, produz valores e ideologia; os democratas, que “eles” chamam de “direita”, acreditam que basta conquistar o comando, sem fazer a guerra cultural.
Urna não é
tribunal. Não absolve ninguém.
(…)
(…)
Encerro
Parece ou não um pesadelo? Sete anos depois, aquela mesma súcia está no topo do noticiário, dizendo as mesmas coisas, defendendo as ações criminosas de sempre, com os mesmos argumentos. Alguma coisa mudou em relação a 2006: a oposição é ainda menor e mais silenciosa. Fosse eu da oposição, faria dessa fala um ativo eleitoral. Os brasileiros têm o direito de saber que votar em Dilma, segundo Lula, corresponde a fazer uma espécie de defesa dos mensaleiros.
Título
e Texto: Reinaldo Azevedo, 22-11-2013
Parece ou não um pesadelo? Sete anos depois, aquela mesma súcia está no topo do noticiário, dizendo as mesmas coisas, defendendo as ações criminosas de sempre, com os mesmos argumentos. Alguma coisa mudou em relação a 2006: a oposição é ainda menor e mais silenciosa. Fosse eu da oposição, faria dessa fala um ativo eleitoral. Os brasileiros têm o direito de saber que votar em Dilma, segundo Lula, corresponde a fazer uma espécie de defesa dos mensaleiros.
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