Sempre pensei que o que
distinguia a direita e a esquerda em Portugal era o realismo. Mas pensei mal. É
o realismo e o tom de voz. A esquerda fala muito e fala alto; a direita fala
pouco ou não se ouve. A esquerda está sempre aí em fóruns e comícios e greves e
manifestações e t-shirts e revoluções de facebook; a direita faz-se de morta. O
partido com assento parlamentar mais à direita define-se como “centrista”; o
maior partido de direita diz-se “social-democrata”, nome que o socialismo se
deu quando decidiu que, afinal, nem todos os socialistas queriam construir o
caminho para a sociedade comunista (Sá Carneiro, aliás, bem tentou filiar o PSD
na Internacional Socialista; Soares é que não deixou).
A esquerda bate no peito com
orgulho; a direita age como uma minoria clandestina que combina sinais secretos
para se reconhecer na rua. E, no entanto, em 41 anos de democracia, a direita
governou 20. E há de governar pelo menos mais um, ou quatro. Soares é a eterna
figura da democracia. E, no entanto, entre a liderança do Governo e a
Presidência da República, esteve 14 anos no poder, acabando pulverizado nas
urnas por Cavaco, que completa agora 20 anos de poder, entre os mesmos lugares
em São Bento e Belém.
Falando muito e alto, a
esquerda convenceu-se de que a direita ia ter uma derrota histórica. Que o PS
voltava ao poder, que a CDU capitalizaria a revolta dos trabalhadores, Marinho
e Pinto a dos descontentes com os partidos, que o Parlamento ia ser inundado
por um sem-fim de “plataformas” e “movimentos cidadãos”, com o Livre à frente
de todos. Só para o Bloco não se augurou grande futuro, provavelmente destinado
à implosão, sem honra nem glória, depois de habitado e abandonado por todos.
Afinal, foi-se a ver e as
eleições funcionavam com a fórmula “1 eleitor = 1 voto” e não “1 amigo = 1
like” ou por um qualquer sistema de medição tonal (fosse assim e Heloísa
Apolónia teria um reinado só talvez comparável ao de João Jardim).
Ao que parece, havia um país
para lá das fronteiras Cais do Sodré – Príncipe Real. Ao que parece, por mais
amigos que tenhamos, há sempre uns 10 milhões de portugueses com quem nunca
falámos.
Esse Portugal, o único que
existe, castigou a coligação PSD / CDS pelo sofrimento que o fez passar e pelas
promessas que não cumpriu, dando-lhe menos 700 mil votos e assim lhe retirando
a maioria absoluta. Mas confiou-lhe novamente o governo, porque não confundiu
quem lidou com o problema com quem o provocou. Porque não se esqueceu de que
foi o governo Sócrates que nos atirou direitinhos para a troika. Porque a
troika nem sequer era o problema; a troika era a solução desesperada; o
problema era termos chegado ao ponto de, em dois meses, já não ter sequer
dinheiro para pagar salários e pensões (ministro das Finanças de então dixit) e
já ninguém nos emprestar mais ou só o fazer a juros de 8, 9, 10 e até 11%.
Porque reconheceu que, apesar
dos percalços, Passos fez o que tinha de fazer, mesmo arcando com o odioso de
todas as questões. Porque não viu o PS de Costa explicar ao certo que diabo ia
fazer assim de tão diferente do de Sócrates. Porque viu o que se passou em
França e Itália e, sobretudo, na Grécia. Que, um a um, todos os que se gabavam
de ter soluções diferentes, fizeram tudo que antes criticavam assim que
chegaram ao governo. Porque não acreditou que isto era mesmo porreiro era se
voltássemos ao escudo. Que isto ia lá era voltando ao “orgulhosamente sós”
agora em versão comunista. Porque percebeu que a triste realidade é que devemos
muito dinheiro a muita gente, e que, se decidirmos não pagar parte dele, o
credor é capaz de não nos emprestar mais, chame-se Merkel ou Zé Manel.
Sobretudo quando quem sugeria ideia tão peregrina não tinha uma palavra sobre
como tencionava pôr o país a sustentar-se e ainda baixar impostos e distribuir
aumentos sem precisar de ir pedir outra vez ao Zé Manel.
Esse único Portugal que existe
foi também aquele onde uma deputada de um pequeno partido pôde afrontar olhos
nos olhos o homem de quem se dizia ser dono disto tudo. E esse único Portugal
decidiu premiar o partido dela e de uma líder/porta-voz/escolha-o-seu-eufemismo
que se mostrou sólida e consistente num mês de debates e entrevistas. Sim,
porque, afinal, esse único Portugal vê televisão e consome informação para lá
dos reality-shows e das galas da Cristina.
Esse Portugal não foi na
conversa oportunista dos Marinhos e Pintos desta vida. Na morte aos traidores
do Garcia Pereira. Esse Portugal podia não ter nada contra a nudez da Joana
Amaral Dias, mas, provavelmente, teria apreciado conhecer mais uma ou outra
ideia do Agir. Esse Portugal ainda há de estar para perceber que raio passou
pela cabeça de Rui Tavares quando, às nove e tal da noite, irrompeu nas
televisões com o coração quase a saltar-lhe pela boca, oferecendo-se para unir
um governo das esquerdas – e, afinal, ao fim da noite, era apenas o líder do
oitavo partido mais votado, atrás de Marinho e Pinto e do PCTP-MRPP-poramordedeus,
com 0,7% dos votos, que é como quem diz, mais 0,2 do que o PNR. Esse Portugal
decidiu ainda eleger um deputado do PAN, que falava pouco e baixinho (se
calhar, tem qualquer coisa de direita), porque tinha uma causa clara, uma causa
que uma pessoa às vezes até se esquece que devia ser defendida pelos Verdes (é
dar-lhes tempo. Ainda só tiveram 33 anos).
Ou seja, no fim do dia, esse
único Portugal que existe foi realista, sensato, moderado e bem mais atento do
que, porventura, se poderia alvitrar. Confiou, de novo, o governo aos partidos
que o tiraram do fundo para onde se preparava para esborrachar
espectacularmente, mas decidiu que, desta vez, vão ter de se entender com, pelo
menos, parte dos outros.
Nas tão representativas redes
sociais, esse país foi, nos últimos dias, catalogado de burro, estúpido,
atrasado mental. Isto assim de memória. Masoquista, apaixonado pelo verdugo,
fazia vergonha. Agora é que é, escreveram uns quantos, vou-me embora,
agarrem-me, senão eu vou, ai vou, vou, ó para mim a ir. Um cavalheiro – que,
para o caso, vale o que vale (como se diz nestas coisas), até está longe de ser
um anónimo – fez mesmo questão de pedir, em nome do “respeito pela opinião de
merda alheia”, que quem votasse PaF o “desamigasse” porque “não tolerava sequer
respirar o mesmo ar”. Demorei um nano-segundo a fazer-lhe a vontade, mas já me
arrependi. Foi demasiada boa educação da minha parte.
Aos que assim escreveram e não
conheço, recomendo, vivamente, que façam um favor a si mesmos e se ponham a
andar. A sério. Vão em busca desse país e dessa civilização superior que vos
compreenda e que, não sei como, ainda não vos descobriu. Penso que, se não
tivessem a cabeça tão cheia de superioridade moral e intelectual, teriam espaço
para compreender o país, o mundo, o tempo e, quem sabe, respeitar outras
opiniões e pôr a hipótese de a democracia, a liberdade e o direito serem o
resultado do respeito e da cedência mútuos entre seres humanos e não a
imposição da vossa opinião. Mas talvez eu esteja errado. E haja por aí um mundo
diferente à vossa espera. É procurar. Ouvi dizer que, em Marte, há água.
Sabe-se lá se, um dia destes, não encontram lá gin.
Aos outros, que são bons
amigos, gente inteligente, humanista e toda ela, julgo, crendo-se de esquerda,
não me lixem. Vocês são melhores do que isso. Eu sei que hoje parece que nunca
ninguém votou nele, mas eu lembro-me que alguns de vocês votaram em Sócrates em
2005. E eu não vos chamei de burros. Alguns de vocês até voltaram a votar em
Sócrates em 2009. E eu não vos chamei de burros. Alguns de vocês votaram ainda
uma terceira vez em Sócrates em 2011! E eu, ah, caramba, mordi-me todo, mas nem
aí vos chamei de burros. Outros votaram hoje em Costa, ou no Bloco, ou no
Livre, em quem quiseram, e fizeram muito bem. Mas não me falem de uma coligação
de governo de esquerdas. Umas esquerdas que não se entendem num partido e que
criam novos “blocos” e “plataformas” e “movimentos cidadãos” de cada vez que
discutem ao almoço, mas que agora, por milagre, se iam entender para governar
um país. Não falem em nome do povo como se o povo vos pertencesse e quando, na
verdade, 68%, 90%, ou mesmo 99,3% do eleitorado não vos mandatou para coisa
nenhuma. E, sobretudo, não falem em nome do povo para depois o chamarem de
burro.
Mais do que nunca, isto só vai
lá com diálogo, tolerância, respeito, inteligência. E, já agora, algum amor à
pátria. Este país somos nós, com todos os nossos defeitos e virtudes. E vai
para onde o levarmos. Façam-me a vontade e eu prometo, desde já, nunca me
candidatar a coisa nenhuma.
Título e Texto: Alexandre Borges, Blasfémias,
6-10-2015
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