Fernando Leal da Costa
O Plano Nacional de Reformas, no que à
Saúde diz respeito, é um logro. Não contém reformas, apenas acções de
continuidade estrutural, não tem nenhum tipo de justificação para os números
apresentados.
O denominado Plano Nacional de
Reformas (PNR), no que à Saúde diz respeito, é um logro. Não contém reformas,
apenas tem acções de continuidade estrutural, não tem nenhum tipo de
justificação para os números apresentados, não tem calendário para as medidas
elencadas, nem explica como serão alcançadas. Ninguém negará que precisamos de
mais profissionais no SNS, de mais lugares de cuidados continuados, de melhoria
de alguns equipamentos, de substituição de outros, de mais algumas instalações,
de encerrar ou deslocalizar serviços, mas isso não é reformar.
A maioria das medidas nem será
cumprida. Não haverá tempo. Não existe, da parte da maioria que sustenta o actual
Governo de “coligação”, outra ambição que não seja sobreviver até às eleições.
Já se percebeu que vão provocá-las, quando o tempo lhes parecer favorável. Em
suma, o PNR não tem mais do que intendência e medidas gerais de conservação.
Nada de mal, caso não tivesse sido propagandeado como reformista e abrangente.
Há um pacto formal, um
primeiro consenso, que faz com que o SNS tenha sempre funcionado e,
sublinhe-se, melhorado em tempos recentes. O consenso está no artigo 64º da
Constituição que não tem de ser mudado. Está lá tudo. Em primeiro lugar, o
direito à proteção da saúde, por via de uma resposta coerente, sequencial e
inclusiva, de serviços que sejam universais, gerais e, desejavelmente,
gratuitos no ponto de contacto e, em segundo lugar, o dever de cidadania de
tudo fazermos, individual e coletivamente, para garantir a defesa do direito de
proteção da saúde. Um círculo virtuoso.
Assentes nestes pontos,
deveríamos construir uma solução que resolva a questão fundamental, reduzir a
carga de doença e permitir que a longevidade da população se traduza em mais
anos vividos com qualidade e não apenas em anos livres de doença ou
incapacidade. Neste sentido, temos de ir muito mais longe do que onde as
tímidas propostas do Plano Nacional de Reformas nos pretendem levar. Temos de
acordar em que é preciso garantir sustentabilidade financeira a longo prazo,
reformar a prestação de serviços – mudando a forma como é feita, por quem é
realizada, onde é assegurada e como é paga – garantir a equidade e combater as
desigualdades, sem perder o principal enfoque na promoção da saúde e na
prevenção das doenças e das suas consequências.
Teremos de resolver questões
que são mais do que semântica, como sejam não confundir liberdade de circulação
com liberdade de escolha, sendo que nem a primeira, embora o Governo nos queira
impingir o contrário, ainda está resolvida. Outro logro, em que nos querem
fazer acreditar, o de que agora há uma maior liberdade de escolha para a
primeira consulta hospitalar. Em boa verdade, nada de substancial mudou e não
teria sido preciso fazer um despacho para supostamente autorizar o que já não
era proibido. Nunca nada, para lá da capacidade de resposta, impediu um cidadão
de procurar assistência num qualquer hospital do SNS, em especial dos mais
diferenciados. O IPO de Lisboa é um bom exemplo disso mesmo. A forma como esta
“nova” medida foi embrulhada não expõe os problemas por resolver, tais como o
modelo de financiamento alternativo que vai ter de ser implementado nos
contratos programa dos Hospitais e Unidades Locais de Saúde, mascara a
realidade de que os hospitais centrais já têm excesso de procura, não explica
como se adaptarão os contratos das PPP, não se percebe quem assume os custos
dos transportes, nem disfarça que a oferta pública está regionalizada
administrativamente. Mais gritante é a forma como o Ministério da Saúde ignora
a implementação de redes e canais de referenciação que, obviamente, não podem
ser geridos pelo doente e o seu médico de família. Tanto para mudar de que nem
se fala.
As questões de fundo como, por
exemplo, o modelo de financiamento do SNS, a verdadeira liberdade de escolha
para o utilizador, englobando todo o sistema e a oferta total disponível em
cada região de saúde, ou a revisão dos modelos remuneratórios, são evitadas
pela esquerda. A ação deste Governo é conservadora e “reversora”, se o
neologismo poder ser aceite. Consenso eficaz, seria elencar medidas que
ultrapassassem o termo de uma legislatura ou a vigência de um Governo, todas
elas baseadas na melhor evidência científica, afrontando o status quo,
educando, conquistando os “desconfiados”, incluindo os “resistentes” à mudança.
Não seria um trabalho fácil, teria de haver muita humildade, capacidade de
adaptação e disponibilidade para esperar por resultados que não seriam
imediatos. Não seria sempre barato, mas também não seria possível sem a adoção
das melhores tecnologias, com efeitos comprovados, adquiridas a preços
comportáveis. Obrigaria a escolhas que não se compadeceriam com interesses
meramente locais, mas sem deixar de respeitar as especificidades de alguns
grupos de doentes, populações específicas e determinadas localizações
geográficas.
Felizmente, há um capital
humano, organizacional e estrutural que serve de base para o que tem de ser
feito. Tratar-se-á, como sempre, de evoluir sem tudo destruir. Acima de tudo é
a altura de aceitar o primado da saúde em todas as políticas e incluir a
avaliação de impactos na saúde, nomeadamente, no que disser respeito a grandes
obras públicas, transportes, urbanismo, segurança pública, política alimentar,
hábitos de consumo, educação, emprego e fiscalidade. Só a consideração da saúde
no desenho das políticas públicas poderá produzir mudanças que tenham efeitos
de longo prazo na qualidade de vida das pessoas.
O PS tem um notável conjunto
de profissionais capazes de “pensar saúde”. Mas não possui a exclusividade das
boas ideias, nem é dono do único modelo de financiamento e organização do
sistema de saúde, SNS incluído. Os socialistas, com outra liderança e
conseguindo ultrapassar as amarras do radicalismo a que agora se prenderam,
poderiam ser um parceiro útil e consequente. Qualquer acordo que adense as
soluções a que a Constituição nos obriga tem de ter, num sistema parlamentar
como aquele que felizmente temos, uma base de entendimento entre os partidos
políticos. O parlamento representa a população que o elegeu. Por isso, o PSD,
que foi o partido vencedor das últimas eleições legislativas, deve assumir o
comando de um projecto de mudança. O Grupo Parlamentar do PSD deu, com a
apresentação de uma Resolução sobre o SNS a que a comunicação social não quis
dar o relevo devido, um passo significativo na definição do que devem ser as
prioridades para a política de saúde no futuro mais próximo. Essa Resolução é
um excelente documento de futuro consenso, um magnífico documento para a reforma
da Saúde Pública, e é a base para um conjunto de iniciativas de carácter
plurianual e com duração para lá de uma legislatura.
Chega de logros. O País segue
com calma aparente porque a esquerda protege o seu Governo. Tem havido casos
graves de infecção hospitalar, cirurgias não realizadas por falta de material,
adiamentos e desvios de doentes por falta de anestesistas, demissões de
chefias, atrasos no acesso a medicamentos oncológicos, mortes por chegada
supostamente tardia do INEM. Em tempos recentes, estas notícias, que
timidamente ainda vão chegando aos jornais, teriam sido amplificadas para lá do
eco. Os casos pontuais são, agora, pontuais. Há seis meses, eram sinais do
“desmantelamento”. Só que agora, se nada for feito, face às perspectivas económicas
que parecem ser as mais reais, seguramente não haverá desmantelamento, mas tudo
poderá piorar. Enfim, quem já paga impostos irá pagar mais por menos. Quem nem
taxas moderadoras paga ficará com a consolação de já nada pagar por aquilo que
de nada lhes poderá valer. Triste sina, a dos logrados.
Título e Texto: Fernando Leal da Costa, Observador, 11-5-2016
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