quarta-feira, 3 de julho de 2024

A pretexto de futebol

Henrique Pereira dos Santos

Não sei o suficiente de futebol para escrever sobre futebol.

Tenho ideia de ler uma entrevista a Eugénio de Andrade a quem perguntavam por que razão, sendo ele um grande melómano e tão empenhado na musicalidade da sua poesia, nunca escrevia sobre música, ao que ele respondia que sobre a música se exigia que se escrevesse com um conhecimento técnico que ele não tinha.

Assim estou eu com o futebol.

Mas posso escrever sobre a extraordinária arrogância das opiniões públicas (não estou a falar das discussões em rodas de amigos ou no táxi, não as compreendo, mas percebo que sejam mecanismos de socialização e integração comunitária) que vou ouvindo e lendo, vindas de uma espécie de especialistas que são os comentadores desportivos.

Eu não sei que qualificações é preciso ter para ser comentador desportivo, que nascem como cogumelos e, coisa espantosa e impensável noutras áreas do conhecimento, pode-se estabelecer uma reputação profissional de comentador desportivo a partir de uma assumida parcialidade de pontos de vista.


Eu sei que o mesmo acontece no comentariado político mas, ao menos, a generalidade dos comentadores políticos que assumem a parcialidade do ponto de vista não enganam ninguém, não estão ali para avaliar de forma mais ou menos objetiva se Ronaldo jogou bem ou mal, estão ali para substituir os outros Ronaldos da política.

Não faltam comentadores desportivos que têm absolutas certezas dos resultados que a seleção portuguesa alcançaria se se mudasse este ou aquele, ou o esquema de jogo ou seja o que for, nem o famoso jogo do campeonato do mundo, entre a Itália e o Brasil, ganho pela Itália, lhes serve para explicar que o resultado de um jogo é tão imprevisível que até inventaram o totobola, em que raramente se acerta no resultado final de meros treze jogos de equipas conhecidas, apesar de serem milhares os apostadores.

Um selecionador, como qualquer jogador, fará erros, com certeza, uns fazem mais que outros, mas confesso que fico mesmo espantado com os comentários que ouço sobre Ronaldo, sobre a seleção ou sobre o selecionador, lembrando-me sempre do letreiro que havia numa oficina de automóveis das Caldas: "aqui não se aceitam conselhos de quem sabe fazer melhor, só de quem já fez melhor".

Claro que a crítica é livre e o direito à asneira deve ser defendido com unhas e dentes, o que me espanta é mesmo o empenho e o desconchavo de muitas dessas críticas, vindas de gente cujo curriculum desportivo se reduz a ver muitos jogos, achando normal qualificar como evidentemente incompetente gente que põe uma equipa nos quartos de final de um campeonato europeu.

Imagino que, por exemplo, nenhum promotor de programas de cozinha aceitasse que o critério para escolher o júri fosse o peso dos jurados, no pressuposto de que comer muito é o mesmo que saber avaliar um cozinhado.

Aparentemente, o critério para escolher comentadores desportivos, no entanto, não parece ser muito diferente.

Título e Texto: Henrique Pereira dos Santos, Corta-fitas, 2-7-2024 

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