Paulo Tunhas
A grande filosofia política
protege-nos da facilidade das indignações políticas e do seu guarda-roupa
retórico. E impede-nos de levarmos a sério a quase todos os discursos políticos
do dia a dia.
Face aos grandes filósofos, a
questão não é nunca a de se ser “por” ou “contra”. Porque as questões que eles
põem se situam num plano mais profundo do que aquele em que as vulgares
discordâncias se colocam. Não porque as filosofias se situem numa esfera separada
e imune à realididade, mas exactamente porque iluminam essa realidade de um
modo sempre novo. Não paramos nunca de descobrir, por exemplo, Platão e
Aristóteles, e não apenas no que tem a ver com a articulação interna do seu
pensamento (uma ocupação que, somando tudo, fica para os profissionais da
coisa), mas também, e até principalmente, por causa da incidência do seu
pensamento no que respeita às nossas ocupações quotidianas. Não se pode, sem
puerilidade, ser “por” ou “contra” os grandes filósofos porque o que eles dizem
tem, directa ou indirectamente, relação com a vida do nosso dia a dia sob o
modo de interrogações que são mesmo perenes.
Esta introdução um bocadinho
esotérica tem a ver com o objecto deste artigo, um breve olhar sobre os dois
últimos livros de Diogo Pires Aurélio, Maquiavel & Herdeiros, de 2012, e O
mais natural dos regimes. Espinosa e a democracia, de 2014 (ambos publicados
pela Temas e Debates / Círculo dos Leitores). São dois livros que resultam de
décadas de reflexão sobre a filosofia política, em especial sobre a filosofia
política dos grandes autores do século XVII, como Hobbes e Espinosa, e, antes
deles, sobre a obra inaugural de Maquiavel. Essa longa convivência com os
autores e os seus problemas permite a Diogo Pires Aurélio (que traduziu
Maquiavel e Espinosa) escrever de um modo que é infelizmente raro: cumprindo as
normas da Academia e, simultaneamente, tocando aqueles que procuram formar uma
opinião educada sobre a coisa política. A erudição que acompanha o pensamento
não comete nunca a má-educação de saltar para a boca de cena.
E é verdade que, lendo-o,
aquela incidência do pensamento filosófico sobre a vida quotidiana salta à
vista. O papel da contingência, da incerteza e do risco na vida política
segundo Maquiavel é revelado de uma forma que ilumina o que se vê no dia a dia,
auxiliando-nos numa visão ao mesmo tempo mais distinta, mais nítida, e mais
distante, menos asfixiada, da realidade. A discussão dos mecanismos através dos
quais a soberania é concebida em Hobbes em estreita relação com a ideia de
representação diz-nos muito sobre o modo mais geral como o Estado contemporâneo
pode, e deve ainda, ser pensado. E a complexidade da reflexão de Espinosa sobre
a democracia permite fazer sentido daquilo que, reivindicando-se dela,
simultaneamente a estrutura e a ameaça.
Descobrimos, por assim dizer,
os problemas por detrás dos problemas. Os problemas políticos mais habituais,
os que ocupam jornais e televisões, no fundo exprimem, sob uma forma mais ou
menos distorcida e retórica, por mais insignificantes que sejam os personagens
que se agitam, a conflitualidade que é o modo de ser da sociedade. Em última
análise, a filosofia não pode evitar ser uma ontologia. Mesmo quando lida com
questões de teoria do conhecimento ou estéticas. Ou, no caso presente, com
questões políticas. A filosofia política, queira-o ou não, desemboca numa
ontologia da sociedade, numa teoria do que é a sociedade e do que somos nós
mesmos enquanto parte dela. Mesmo que a verdade dessa teoria, em virtude da própria
natureza do seu objecto, seja em última análise indecidível.
Mostrá-lo é no entanto
fundamental se quisermos fazer algum sentido da nossa experiência, um sentido
que não seja uma mera alucinação passional de uma crença política. Aconselho
vivamente, neste capítulo, a leitura da segunda parte (“O império das paixões”)
do livro de Diogo Pires Aurélio sobre Espinosa. Nele se mostra como, para
Espinosa, a racionalidade política, não conseguindo nunca verdadeiramente
escapar ao domínio do passional – a vida política é estruturalmente passional
–, pode, no entanto, almejar a uma inteligibilidade que, de certo modo, nos
permite uma compreensão que vai além do estritamente passional.
Falei há pouco da distância
que nos permite uma visão menos asfixiante da realidade e, agora, de uma certa
libertação das paixões. No fundo, a vantagem da grande filosofia política é
afim daquela que a grande história nos permite. Certamente, e não custa admitir
o que Aristóteles dizia e que quase se transformou num lugar comum, que a
filosofia (parcialmente acompanhada pela poesia) busca o universal e a história
o particular. Mas, paradoxalmente, filosofia e história coincidem, se bem que
por vias muito diferentes, nessa possibilidade de distanciação relativamente às
urgências do passional.
Em todo o caso, a filosofia, e
não é um dos seus menores benefícios, protege da facilidade da indignação. Não
dos actos de aprovação e de desaprovação, é claro. Muito pelo contrário. Mesmo
que, como dizia Hegel com razão, não deva ser edificante, deve-nos ajudar a
julgar. Mas protege-nos da facilidade da indignação quando esta funciona quase
como uma cumplicidade com aquilo que indigna, um caso desagradavelmente
frequente. E a grande filosofia política protege-nos da facilidade das
indignações políticas e do guarda-roupa retórico que fatalmente as acompanha.
Quer dizer: impede-nos de levarmos muito a sério a quase totalidade dos
discursos políticos que nos acompanham diariamente. Ou melhor: impede-nos de os
levarmos à letra e convida-nos a traduzi-los, por difícil ou improvavelmente
satisfatório que o exercício pareça, nas questões fundamentais que se repetem.
Significa isto que devamos
sair da sociedade, do “império das paixões”, para a pensar? De modo algum. As
análises minuciosas que Diogo Pires Aurélio leva a cabo em torno de alguns
textos clássicos indicam-nos exactamente a via contrária. A saída para fora da
sociedade com vista a uma contemplação rigorosa da vida social, além de
impossível, tornar-nos-ia cegos à própria sociedade. A distância possível face
à passionalidade social dá-se ainda no interior da própria sociedade e não pode
evitar nunca um certo comprometimento com esta. A realidade política não é
avistável a partir de Sirius. Essa é igualmente uma das grandes lições
oferecidas pelos dois livros de Diogo Pires Aurélio.
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