Jacinto Flecha
Como cidadão exilado em São
Paulo durante metade da vida, não é raro ouvir em interurbanos esta pergunta de
algum conterrâneo: Quando é que você aparece por aqui? Respondo que venho
pensando nisso há muito tempo, mas sempre surge um motivo para impedir. Aqui
entre amigos, vou confidenciar que esse motivo é sempre o mesmo: detesto
viajar, e até hoje só gostei de uma viagem. Tenho procurado a origem dessa
idiossincrasia e encontrei algumas pistas, nenhuma inteiramente convincente.
Explica, mas não justifica, como se diz.
Uma reminiscência dos meus
tempos de colégio interno, que se repetia a cada início e fim de férias, entra
nessa categoria de explicação parcial. Sempre que eu transpunha em jardineira
(ônibus d’antanho) os sessenta quilômetros de estrada de terra entre minha casa
e o colégio, as constantes paradas para subir ou descer passageiros (aqui se
diz catar capiau) transformavam o veículo em aspirador de poeira. Ela entrava
por todas as janelas, o passageiro com seus pertences entrava ou saía pela
porta, e o alimento que eu havia tomado costumava sair por onde entrou.
Esta experiência desagradável
só explica minha repulsa por uma parte das viagens, pois deixou de ocorrer
quando a poeira das estradas foi marginalizada pelo asfalto. Quanto aos aviões,
não costumam fazer pinga-pinga para atender passageiros com galinhas, porcos,
alimentos, gaiolas de passarinhos, malas, trouxas de roupas. E minha única
viagem de navio – uma travessia do Canal da Mancha durante quatro horas – não
me provocou enjoo (o enjoo ainda usava chapéu).
Em algumas andanças por livros
que descrevem costumes medievais, constatei que na época se viajava muito,
contrariando francamente o que eu imaginava. As estradas primitivas e os
veículos pouco velozes de então haviam criado em mim a impressão de uma
população arraigada aos seus lugares de origem, e de fato isso existia. Mas
animais de transporte, veículos leves e abertos tornavam convidativas e
agradáveis as viagens para quem gosta de viajar, o que exclui minha sedentária
pessoa.
![]() |
Com trajes típicos, peregrinos
no caminho de
Santiago de Compostela (Espanha)
|
No mundo medieval, e até muito
depois, as viagens quase não tinham o caráter de turismo, nem eram empreendidas
com o objetivo de conhecer outras terras, outros costumes, outra gente. Nem por
isso as pessoas desconheciam o que se passava em locais distantes, as
informações circulavam profusamente por meio das descrições e relatos dos que
viajavam; sempre interessantes, pois ainda se sabia conversar. Viagens de
negócios, navegações comerciais, peregrinações, todas eram muito comuns na
época. A devoção popular deslocava pessoas a grandes distâncias para cumprir
alguma promessa, ou simplesmente venerar um santo, uma imagem milagrosa. Um
exemplo bem conhecido eram as viagens a Santiago de Compostela, na Espanha.
Ainda existem resquícios dos Caminhos de Santiago.
Antigamente não havia
estatísticas para tudo, tornando impossível comparar numericamente os objetivos
das viagens antigas com os das atuais. As peregrinações religiosas foram quase
inteiramente substituídas pelo turismo moderno, especializado em colocar bois
diante de palácios. Hoje esse gado humano não consegue relatar nem comentar
o que viu, mas existe o selfie (auto-retrato, em língua
inteligente) para poder dizer aos amigos: “Estive lá”. Para algum leitor quase
tão ultrapassado quanto eu, informo que o tal selfie é um
recurso de celular inteligente, usado por um ser não inteligente para
fotografar-se junto ao que julga inteligente. Já deve existir uma estatística
classificando os lugares mais fotografados do mundo. Mas será que os bois
auto-retratados entenderam os palácios? Tenho minhas dúvidas.
Nada disso explica minha
condição de refratário a peregrinação, turismo ou qualquer outro tipo de
viagem, no que sou fiel ao provérbio antigo aplicável a ambos: Boa
romaria faz quem em casa fica em paz. Continuarei procurando os motivos da
minha aversão a viagens, e os divulgarei quando (e se) encontrar.
(E a tal única viagem de que
gostou? Vai passar de liso?).
Já ia esquecendo. Acho até que
a minha má memória tem algo a ver com tudo isso. A tal viagem se deu num
domingo de manhã, mais de vinte anos atrás. Eu estava rezando na igreja,
enquanto aguardava o início da Missa. Passou ao meu lado uma família, e o
perfume usado por um dos seus membros levou-me instantaneamente para a cidade
onde estudei. Eu quase diria “em carne e osso”, tão reais eram para mim o local
(uma rua central, diante de um bar-restaurante com cadeiras de engraxate), o
dia da semana (domingo), a hora (11:55h), a época do ano (próximo das férias de
julho), o ano (1956), o “assunto do dia” (campeonato nacional de futebol, cujas
notícias o rádio transmitia). O tal perfume, muito usado na época, fez uma
espécie de “ponte aérea”, mas até hoje não consigo lembrar de onde vinha o
perfume que certamente havia naquele local, e que me proporcionou essa
“viagem”. Tanto mais que nem sequer parei ali, pois só dispunha de cinco
minutos para chegar ao colégio para o almoço.
Quem me dera que todas as
viagens fossem fáceis e agradáveis como aquela. Mas em qualquer hipótese eu
continuaria evitando o turismo tipo “gado humano”.
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