João Marques de Almeida
A afirmação de que tem havido
um excesso de liberalismo em Portugal é mais ou menos como dizer que na Suécia
se produz demasiado vinho, ou que a esquerda portuguesa é coesa e unida.
No debate político em
Portugal, há argumentos bizarros. Alguns deles são repetidos de manhã, à tarde
e ainda à noite na SIC Notícias. Parece que a repetição permanente desses
argumentos lhes retira a sua natureza bizarra. Uma das ideias mais peregrinas
diz-nos que houve um excesso de liberalismo nos últimos anos em Portugal. O
liberalismo foi responsável pela crise, pelo empobrecimento do país, pela
falência do grupo Espírito Santo, pelas dívidas da TAP, e por mais umas
centenas de acontecimentos nos últimos anos. Até já ouvi um amigo meu
benfiquista dizer que foi “o neo-liberalismo do mercado do futebol que levou à
hegemonia do Porto nos últimos vinte anos” – isso e a “corrupção” naturalmente.
A afirmação de que tem havido um excesso de liberalismo em Portugal é mais ou
menos como dizer que na Suécia se produz demasiado vinho, ou que a crise
agrícola no Pais de Gales se deve à seca, ou que a esquerda portuguesa é coesa
e unida.
A maioria – talvez mesmo a
totalidade – dos críticos trata o liberalismo como uma ideologia política. Os
ataques ao liberalismo em Portugal mostram muito mais os preconceitos e os
dogmas ideológicos de quem os faz do que eventuais problemas das ideias
liberais. O Observador não será a publicação adequada para um
ensaio sobre o pensamento político, mas é necessário clarificar alguns pontos.
O liberalismo não é uma ideologia política. Aliás, os autores liberais, em
geral, sempre mostraram um horror enorme em relação às Ideologias políticas.
Este ponto é essencial para se entender o liberalismo. O liberalismo é uma
atitude perante a vida pública. Uma atitude onde se procura um equilíbrio
difícil de alcançar, entre o cepticismo e o compromisso com a reforma. Como se
consegue fazer as reformas mais adequadas à imperfeição da natureza humana? Eis
a questão central do pensamento liberal.
O cepticismo em relação às
intenções e aos interesses dos indivíduos constitui o ponto de partida das
reflexões liberais. Os textos de Isaiah Berlin – um dos liberais mais
interessantes do século XX – são um dos melhores exemplos do cepticismo
liberal. Este cepticismo protege os liberais do perigo de excessivas
expectativas em relação a qualquer líder político. Mas mais importante, impede
que se acredite em ideologias políticas como respostas aos males do mundo. O
cepticismo explica igualmente uma das tensões permanentes no pensamento
liberal: o poder do Estado. Quem desconfia da natureza humana, não pode confiar
inteiramente no poder do Estado. Como disse outro pensador liberal, Lord Acton,
“se o poder corrompe, o poder absoluto corrompe absolutamente.” No caso de Portugal,
será caso para dizer se uma maioria corrompe, uma maioria absoluta corrompe
absolutamente.
Por outro lado, os interesses
egoístas, a ambição desmedida – traços definidores da natureza humana para um
liberal – exigem instituições fortes. Esta tensão entre um Estado
suficientemente forte para impor regras comuns e um Estado demasiadamente forte
que possa ameaçar a liberdade nunca será resolvida com ideologias ou doutrinas.
Só há duas respostas possíveis. Por um lado, a construção de instituições
fortes, capazes de limitar o poder dos seus titulares. Por outro lado, uma
cultura liberal que combata os privilégios e o arbitrarismo e que defenda o
exercício da liberdade.
Na história do liberalismo, é
possível identificar dois momentos distintos. O primeiro vai desde meados do
século XVII até finais do século XVIII. Os traços centrais foram a luta contra
os privilégios do Antigo Regime e a reforma de sociedades com profundas
desigualdades históricas através do poder da lei. Foram estes os temas centrais
de Locke e Montesquieu, de Hume e Adam Smith.
O segundo momento começou com
a reação de Burke à Revolução Francesa e estende-se até aos ataques às
ideologias totalitárias do século XX, onde os melhores exemplos são
possivelmente Raymond Aron e Max Weber. Foi este segundo momento que provocou
na tradição liberal uma grande desconfiança nas ideologias políticas – mas que
já se adivinhava no cepticismo de Hume e de Kant.
Tradição é talvez a melhor
palavra para definir o liberalismo. E, na minha opinião, o maior fracasso da
história da democracia portuguesa foi a incapacidade para se construir uma
tradição liberal forte. Se hoje estamos numa situação muito difícil, uma das
causas foi o défice de cultura liberal – talvez o único défice superior ao
défice financeiro. Portugal é um país onde continua a haver demasiados
privilégios – que têm apenas contribuído para o enriquecimento de poucos e o
empobrecimento de muitos – demasiada impunidade e um exercício do poder de um
modo arbitrário, desde o nível local ao nacional.
É revoltante ouvir alguns que
beneficiaram desses privilégios, dessa impunidade e que exerceram o poder de um
modo arbitrário acusar o liberalismo pela desgraça que causaram ao país.
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