Maria João Marques
Isabel Moreira e Raquel Varela – e as
outras mulheres de esquerda igualmente coquetes – só aceitam um socialismo que
não lhes perigue os armários de sapatos. E isso o meu armário de sapatos apoia.
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Raquel Varela e Isabel Moreira |
Nas primeiras décadas do
século XX associava-se uma expressão aos políticos socialistas britânicos que
vinham de famílias da classe alta: vote labour, sleep tory.
Irredutíveis defensores da socialização dos meios de produção (era assim o
socialismo antes do colapso da União Soviética, é bom lembrar, que agora há
muito socialista saudoso dessa pureza ideológica), viviam em consonância com os
seus ideais: habitavam nos bairros chiques de Londres ou nas suas casas
ancestrais no campo, frequentavam socialmente apenas os seus pares da pirâmide
social, cumpriam todos os rituais upper-class e – daí a
expressão – para o adultério escolhiam as senhoras casadas da mesma classe
social.
Não conheço muito bem o atual
socialismo europeu, mas nós temos em abundância gente de esquerda em permanente
dissonância cognitiva entre as suas ideias e o seu estilo de vida.
Podia citar José Sócrates,
esse ídolo da ala esquerdista radical do PS veneradora da santa Justiça Social,
que afinal (segundo as notícias) paga um magro ordenado de 600€ ao motorista.
Mas interessa-me levar o argumento para questões de género, pelo que prefiro
ilustrar com Raquel Varela e Isabel Moreira este ‘votar à esquerda, viver à
direita’ (escolho ‘viver’ porque, graças aos deuses, não sei com quem dormem – ainda
que tenha algum temor de que Isabel Moreira um dia destes resolva informar
disso o facebook e eu acabe por apanhar involuntariamente a informação).
Houve por estes dias uma
pequena polémica no facebook à volta de um restaurante caro onde ambas jantaram,
tendo sido comentado como estas figuras cimeiras da esquerda nacional
praticavam refeições demasiado caras para os rendimentos médios portugueses. E
a isto Raquel Varela deu uma resposta muito curiosa. Passemos por agora por cima do
tom sobranceiro e snob com que Varela comentou o primeiro-ministro (‘com o seu
fato de alfaiate de segunda, morador suburbano’), que o texto sobre os snobs de
esquerda fica para outro dia.
Centremo-nos nas palavras de
Raquel Varela para descrever o socialismo: ‘Socialismo é liberdade e
abundância, se falta uma delas então não é socialismo, é outra coisa’.
Paradoxalmente, linhas depois
de ter descrito o socialismo como ‘liberdade’, Varela prescreve ‘socializar’
propriedade para resolução dos problemas do país. Ora bem, socialismo é
liberdade desde que não seja liberdade de deter propriedade privada sem
depender da arbitrariedade do estado, nem liberdade de cada um usufruir dos
resultados monetários (avultados ou não) do seu trabalho ou das aplicações do
seu capital. Socialismo é liberdade mas só liberdade q.b. e basta muito
poucochinho.
Talvez a liberdade económica
não seja importante para Raquel Varela, mas estou certa que a liberdade de usar
colares e lenços e de ir ao cabeleireiro e de usar maquilhagem lhe é cara.
Aproveito, portanto, para a informar – com coração pesaroso porque estou certa
que será uma surpresa funesta – que o socialismo, onde implementado, também não
ficou conhecido pela afeição à vaidade feminina. Na verdade, combatia-a. Os
preparos (agradáveis) em que Isabel Moreira e Raquel Varela se apresentaram no
seu jantar seriam apelidados, numa sociedade socialista, de decadentes,
burgueses, capitalistas, individualistas, reacionários. Tudo pecados que na
China ou na União Soviética presenteavam com regularidade pessoas ao gulag ou
ao campo de reeducação pelo trabalho.
A outra palavra de Varela para
o socialismo – ‘abundância’ – é ainda mais pertinente, tanto mais que se trata
de uma historiadora e saberá certamente que, em todos os países onde o
socialismo foi experimentado, o que resultou foi mesmo a escassez – só por
acaso o contrário da abundância. A ilusão de Raquel Varela com a abundância
socialista fez-me lembrar o entusiasmo de Mao Zedong quando lançou o Grande
Salto em Frente em 1958, esse radical movimento de socialização da agricultura,
prometendo que os chineses teriam cinco refeições diárias em consequência de
tal política e que os excedentes alimentares (porque claro que sobraria comida)
seriam doados a países pobres. O resultado do Grande Salto em Frente, números
do académico Frank Dikotter, foram 45 milhões de mortos por abundância – mas
abundância de fome. (Não vale a pena lembrar também o Holodomor, o genocídio de
ucranianos por Lenine, ou vale?)
Enfim, eu aprecio muito a
vaidade e os cuidados que têm consigo próprias de Raquel Varela e Isabel
Moreira. Desta vez não estou a ser irónica. Aprecio porque quebram o
cinzentismo estético que se exige às mulheres na política (que é mais um
assunto que fica para outro dia). Mas aprecio sobretudo porque asseguram que o
seu socialismo é de faz-de-conta. Isabel Moreira e Raquel Varela – e as outras
mulheres de esquerda igualmente coquetes – só aceitam um socialismo que não
lhes perigue os armários de sapatos. E isso o meu armário de sapatos apoia com
toda a veemência.
Que tenham um Natal feliz,
livre e abundante.
Título e Texto: Maria João Marques, Observador,
26-12-2014
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Gostei desta prosa...difícil de entender como são as mulheres hoje em dia.
ResponderExcluirTchau ...socialistas de trazer por casa!!!!!!!!
Bem analisado. Mas sejam elas da chamada esquerda, da direita,ou mesmo de algum centro (seja lá o que for que isso signifique), todas as mulheres têm o direito a se embelezarem, pois assim o Mundo até gira melhor. O comunismo (que foi a infantilidade da aplicação do socialismo em termos práticos) não resultou socialmente em nenhum dos campos (países) aonde foi institucionalizado (obrigatório/imposto à força). No entanto, as ditaduras da chamada direita são elas, por si próprias, igualmente nefastas para as liberdades, garantias, felicidade e progresso da humanidade que tem de viver nesse tipo de regimes. Uma democracia com Leis que funcionem, que travem a criminalidade, seja ela de pé rapado ou de colarinho branco, que promova a cultura, o trabalho, a saúde, o pagamento adequado a todos os cidadãos, para que possam viver com dignidade, bem aí eu já me revejo.
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