Maria João Avillez
Tudo o que venha a ocorrer
passou a ser responsabilidade da coligação: o PS condescende, a direita que
ceda. Subentendido: o PS não ganhou mas, amanhã ou depois, far-se-á a ”vontade
dos portugueses”.
1. A vitória de
um, Passos, estava “proibida”, a derrota do outro, Costa, era impensável.
Talvez por isso há um exército de gente que desde ontem nos quer fazer crer no
contrário: ganhou a esquerda. Daí ao “competir-lhe” governar esteve para ser um
passo que foi aliás ampla e audivelmente ensaiado, dias a fio, em televisões e
afins.
Quem tivesse ouvido o tal
exército, era quase isso que diziam os seus soldados, com aliás desnorteante
implausibilidade. Mais: Costa, que arredou Seguro do Largo do Rato em nome de
uma vitória inadmissível de tão “poucochinha”, embora o PS tivesse ganho as eleições
contra os 29% da coligação, foi ontem à noite derrotado mesmo tendo obtido
quase igual percentagem de votos
Preferiu não partir – e para
onde iria? –, Mas esperemos os resultados da tão apreciada “moderação”, não
duvidando eu que ela é também fruto de (sérios) avisos feitos logo na noite das
eleições de que talvez fosse melhor não indispor assim tanto a “Europa”. Ou
seja, a moderação não é inteiramente da autoria política do lider do PS.
Quanto à disponibilidade em
negociar com a “direita”, que muitos se apressaram a registar, ela existirá,
sim: desde que, bem entendido, a coligação se apresse a desfazer-se de grande
parte do seu futuro programa de governo (e desde logo da “austeridade”),
acolhendo o grosso do guião do PS. Não me parece que seriamente isto se possa
confundir com um bem-vindo espírito de compromisso, tão desejável na nossa
cultura política, na saúde dos partidos, na vida do país. Quem nos dera e que
falta faz.
Sucede porém (talvez seja
pessimismo meu, tão destoante do optimismo reinante) que nada me indica
que o sopro desse espírito de compromisso tenha descido sobre a direcção
socialista. O “tom” do que tenho ouvido surge-me antes como uma série de
“desistências” que a esquerda já está a achar normal avisar que irá impôr à
coligação, sobre prioridades, medidas e timings que a própria
esquerda não conhece e a coligação ainda não anunciou.
Seja como for e em resumo, o
“ónus” – já repararam? – foi chutado do recinto dos vencidos para a grande área
dos vencedores. Tudo o que venha a ocorrer passou a ser responsabilidade
exclusiva da coligação: o PS condescende, a direita que ceda. Subentendido: o
PS não ganhou nas urnas mas, amanhã ou depois, far-se-á a ”vontade da maioria
dos portugueses” (que não ganharam as eleições e por coincidência são todos de
esquerda). Soletrar a palavra “compromisso” sem um compromisso não quer dizer
nada.
Nisto tudo, saúde-se a
racionalidade política de Fernando Medina, autor – e isso conta – do discurso
mais lúcido feito desde há muito na área socialista. O Presidente da Câmara de
Lisboa recentrou o PS, balizou com firmeza as suas fronteiras, traçou linhas
vermelhas. Com isso separou o trigo do joio. Não é pouco e foi o único.
2. É isso: a
coligação ganhou – a explicação é simples – porque Passos Coelho acreditou. Como
aos olhos de muitos “parece” porém que não ganhou, vale a pena, porque é caso
raríssimo na política, lembrar que a coligação ganhou contra tudo, até contra o
mau tempo: ganhou contra o “empobrecimento”, a “decadência” e a “fome” vendidas
nas manchetes durante quatro anos; contra uma austeridade, “desnecessária” e
intencionalmente lesiva; contra o coro não sei se mais choroso se mais
hipócrita da emigração dos “cérebros portugueses” ou dos mais “humildes” (as
oposições usavam-nos sem critério); ganhou contra os debates televisivos, os
comentadores e as suas certezas de aço contra os segundos resgastes (e quem
sabe, os terceiros) e o sermos “iguais à Grécia”, mesmo quando há muito já não
éramos; venceu contra os infindáveis Grândola Vila Morena monocordicamente
ouvidos durante meses, de norte a sul do país; ganhou contra greves e manifs,
ganhou contra os lesados do BES solicitamente acolhidos, enquadrados e usados
pela CGTP, pobres deles; venceu contra mentiras, chacotas, humilhações,
insultos, desconfianças, difamações e até coelhos esganados à entrada de
universidades ou espaços públicos. Ou seja, o ódio tinha onde se sentar e o
ressentimento podia abrir o cardápio acima exposto e escolher por onde
disparar.
Foram quatro anos disto
3. A derrota era
impensável, sim. “O Costa é mil vezes melhor que isto!” dizia-me um “atónito”
Paulo Rangel, domingo à tarde, num matar de saudades telefónico a propósito de
António Costa, que ambos conhecemos bem. E é.
É verdade: o PS fez uma
campanha sem “foco”. Em lugar de duas ou três ideias forte,s houve um lote de
coisas atiradas, a eito e sem propósito, ao ar dos dias. António Costa achou
que podia dizer aos chineses o que não podia dizer aos portugueses, que “isto”
estava melhor. Acelerou no dizer mal, usando não raro uma linguagem de
agressividade insultuosa. Ninguém gosta. Os jovens não vivem no país descrito
pelo líder, a estridência de Galamba afugentou (foram para o Bloco) mais que
cativou, o grupo de economistas, ficou a ver navios substituídos pelo
radicalismo e o destempero. Convém porém recordar agora, quando tanto se
fala em “compromisso”, que o cerne das propostas em matéria de crescimento
económico se baseava no consumo e na procura interna quando os portugueses já
estão hoje a consumir de mais e a gastar mal. Era mais avisado pensar nisso em
vez de populisticamente baixar o IVA da restauração, mas as escolhas, mesmo as
más, são felizmente livres.
4. Paulo Portas.
Sabia-se que queria – e precisava – de se redimir do fatal “irrevogável” de
Julho de 2013; também se sabia que era inteligente, assertivo, hábil e o melhor
de todos a comunicar. Não se sabia que seria capaz de cumprir com tamanha
disciplina o guião eleitoral nem de ser tão briosamente “humilde” no desempenho
do papel do “ perfeito número dois”.
A confiança, a jovialidade e a
energia que transpiravam de uma das mais bem pensadas campanhas eleitorais de
que me lembro, e a cumplicidade que escorria das imagens de Passos e Portas,
tiveram alguma coisa a ver com esta vitória. Nenhum dele está velho nem é
datado. Têm alguma coisa a dizer a gente que os queria ouvir. Foram, ainda mais
que o Bloco de Esquerda, quem mais jovens atraíram e interpelaram.
Na rua ou em fábricas, no
campo ou nas cidades, em comícios ou entrevistas, a articulação inteligente
entre Pedro e Paulo (e entre ambos, com a sagaz superintendência de Marco
António Costa) foi uma realidade de que muitos duvidavam, a começar por mim
própria.
“Um parcours sans faute”.
“Ah, mas não vai durar” dizem
as cassandras. Durou o que foi o preciso e daqui para a frente durará até ser
preciso, (digo eu).
5. Há quarenta e
oito horas que os socialistas voltaram a bombardear o país com as bombas da
“austeridade”. Era melhor lembrar-lhes que começou com eles. Alguém se lembra
da durissima austeridade contida no PEC IV? Ou que os sacrifícios e as medidas
duras já haviam entrado em cena pela mão de José Sócrates, com os “PEC”
anteriores, por ele orgulhosamente defendidos e logo aplicados pelo seu
governo?
Mesmo Fernando Medina, sentiu
a necessidade (ou terá sido a pedido?) de recorrer ao chavão: “Uma clara
maioria de portugueses votou em partidos que fizeram da rejeição da austeridade
o ponto nuclear”. Como se alguém gostasse de austeridade, santo Deus.
Já que não irão poder bani-la,
experimentem mudar-lhe o nome: tornarão a convivência mais amena.
6. António
Vitorino ressuscitou Guterres. Não ficou claro o propósito: pedido de socorro
em voz alta? Recado de Costa? Medo de Marcelo? Pura manobra de diversão?
Ou uma esperança muito vã?
Título e Texto: Maria João Avillez, Observador,
6-10-2015
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