Gabriel Mithá Ribeiro
Os preconceitos anti-Trump oscilam entre os
acantonados em heroísmos histriónicos e os escudados em prudências cínicas.
Neste caldo, o debate público sobre política atingiu o zénite da fala vazia.
Vivemos dias de tentativas sem
precedentes por parte da imprensa de edificar um cordão sanitário preventivo em
torno do recém-empossado presidente dos Estados Unidos da América. Os
preconceitos anti-Trump oscilam entre os acantonados em heroísmos histriónicos
– “É preciso derrubá-lo com urgência!”, versão polida do vulgar “Agarrem-me
senão mato o gajo!” (dominante nas esquerdas) – e os escudados em prudências
cínicas – “Ele pode ter razão, mas procede mal… Ele identificou alguns
problemas estruturais, mas manifesta um populismo imprudente…” (das direitas).
Neste caldo, o debate público sobre política atingiu o zénite da fala vazia.
Vejamos a fragilidade de
alguns dos argumentos.
1º Argumento: a história
Um dos princípios básicos
aplicados à racionalidade sobre a condição humana pressupõe que a história
jamais se repetiu ou repetirá, tal como os filhos nunca são uma mera reprodução
dos pais. A constatação pode começar a ser testada nas casas ou famílias de
cada um. Para coletivos mais vastos, se é improvável que a história se repita
num intervalo de tempo curto e numa mesma sociedade (o caso do atual governo
socialista de António Costa em relação ao governo do também socialista de José
Sócrates), será muitíssimo mais improvável qualquer paralelo verosímil entre a
Alemanha de Hitler, na Europa dos anos 30 do século XX, e os Estados Unidos da
América de Trump, no século XXI. Admitir tal paralelo significa aniquilar
qualquer esboço de argumentação racional.
2º Argumento: a virtude
A existir um pressuposto
válido para discutir Donald Trump é o de o mundo ser, na atualidade, vítima da
proliferação em grande escala de ‘agentes da virtude’, expressão de Paul
Theroux. O escritor utiliza-a para descrever as comparações entre a África em
que viveu nos anos sessenta e a África que reencontra dilacerada quando, mais
de trinta anos passados, vai relatando o estado do continente numa longa,
demorada e solitária viagem terrestre pelas terras do interior, do Cairo ao
Cabo. Os equilíbrios (sociais, económicos, culturais) que marcaram as
esperanças da época das independências deram lugar a diversos sintomas que
atestam a regressão civilizacional do continente com contributo ativo e
decisivo dos atuais colonizadores pós-coloniais, os ‘agentes da virtude’,
brancos das Organizações Não Governamentais (ONGS) besuntados de marxismo
cultural.
África é apenas o caso mais
perturbador de um mundo dominado por ‘agentes da virtude’ que hoje proliferam
por todo o lado, em particular nas instituições que tutelam ou regulam a vida
quotidiana de todos nós.
Acrescento outro exemplo
elucidativo. Quem hoje ambicionar combater o maior flagelo dos sistemas de
ensino massificados dos países ocidentais, a indisciplina, esbarrará num muro
construído pelos ‘agentes da virtude’ que dominam por dentro as instituições de
ensino.
3º Argumento: a fantasia
Se existíssemos em reinos de
fantasia seria plausível crer que um dia um virtuoso destruiria o seu próprio
paraíso. A verdade é que o mundo terreno não funciona dessa forma. É
precisamente por não ser nem ambicionar ser mais um ‘agente da virtude’, como o
seu antecessor na Casa Branca, antes um pragmático intuitivo, por vezes
grosseiramente pragmático, que Donald Trump lançou a semente do que pode ser a
mais fértil revolução política do presente.
Basta que não se confunda o
essencial com o acessório.
Com ou sem intenção, Donald
Trump conseguiu que o fenómeno que espoletou assumisse uma carga para lá das
fronteiras políticas habituais, invadindo o domínio das questões
civilizacionais, culturais, identitárias ou intelectuais. Como nesses domínios
não existem retornos, chegou finalmente um princípio de resposta de peso à
revolução soviética iniciada precisamente há um século, em 1917. A atual terá,
seguramente, efeitos bem menos perversos.
Basta sublinhar que o seu núcleo
reside nos Estados Unidos da América do século XXI. Se as garantias de
liberdade, segurança e diversidade não forem aí asseguradas não o serão em mais
lado nenhum.
4º Argumento: os amigos da
onça
Numa Europa Ocidental onde as
extremas-esquerdas, mas também as esquerdas, de há um século para cá elegeram
os Estados Unidos da América como inimigo público número um, rasurando o muito
que os seus países devem ao país de Donald Trump, meros reparos deste deixam
grande parte da opinião publicada num êxtase teatral absurdo. Típico de amigos
da onça.
Essa mesma opinião publicada
vai também utilizando os mínimos pretextos para hiperbolizar um suposto
afastamento inédito dos Estados Unidos da América em relação à Europa Ocidental
para, daqui a uns tempos, vir elucidar-nos como derrotou as intenções perversas
da atual administração norte-americana. Retórica de cantineiro.
5º Argumento: a fala vazia
É usual que as representações
dominantes do mundo que nos rodeia assumam tons bem mais conservadores do que a
realidade vivida propriamente dita. A última jamais pediu ou pedirá licença
para se transformar permanentemente, por vezes de forma acelerada, quando
comparada com o tendencial imobilismo do pensamento e dos discursos sobre ela.
Esta inevitável incongruência vai ciclicamente deixando os indivíduos
literalmente sem palavras que se ajustem à captação e explicação do real
vivido.
O fenómeno apenas assume a
carga ridícula da fala vazia quando certos indivíduos insistem em expor, com
estridência pública, a vacuidade dos vocábulos que impõem a realidades sociais
e históricas que lhes são rebeldes. Com isso, encarregam-se eles mesmos de
transitar para o nível da esquizofrenia discursiva.
A eleição de Donald Trump
tornou essa pandemia visível como nunca.
6º Argumento: os órfãos do
racismo
O inquilino da Casa Branca tem
o dom de fazer convocar contra si dois dos trunfos mais pesados da retórica
mediática e política. Acima deles só o genocídio. Mas, no caso em apreço, o
abuso do último tornaria a fraude intelectual escandalosamente óbvia.
O primeiro trunfo pesado
anti-Trump é o da acusação de racismo.
Todos deveríamos saber que o
racismo é do tempo da discriminação racial instituída a partir do interior dos
estados; é do tempo do nazismo; é do tempo da colonização europeia; é do tempo
do apartheid sul-africano; é do tempo da guerra fria. Qualquer desses grandes
fenómenos políticos, sociais e históricos de referência pertence ao passado,
tal como os produtos que geraram. Destaca-se o racismo.
Designar hoje os fenómenos
associados às relações raciais (que sempre existirão enquanto os humanos
tiverem pigmentações diferentes) de racismo mais não é do que arrastar um
cadáver no tempo para convencer os outros de que se trata de um ser vivo ou uma
múmia com poderes mágicos.
Dos significados que hoje
restam do defunto racismo, o mais útil é o de evidenciar as limitações
intelectuais dos que a ele recorrem. Não conseguem sequer criar vocábulos
adequados aos novos conteúdos dos fenómenos associados à cor da pele.
O que se está a fazer no século
XXI é como se, no século XIX, se continuasse a chamar de escravatura o racismo
apenas porque ambos os fenómenos partilhavam elementos comuns.
Em suma, atira-se um cadáver
para o interior da Casa Branca e acusa-se o inquilino de homicídio.
7º Argumento: a xenofilia
As acusações de xenofobia
estão também transformadas num território fértil da parolice intelectual. Este
é o outro dos trunfos pesados da retórica mediática e política anti-Trump e,
por arrasto, do movimento social que o sustenta.
Deveríamos pressupor que os
que acusam os outros de xenofobia, quase sempre de forma leviana, se sentissem
orgulhosos da sua xenofilia, isto é, da sua simpatia inequívoca por
estrangeiros a ponto de poderem renegar as tradições do povo a que pertencem. Porém,
os corajosos ‘agentes da virtude’ jamais se atrevem a auto identificar-se como
xenofílicos.
E somos nós que permitimos que
tais ‘virtuosos’ vivam no melhor de dois mundos. São compensados em poder e
votos pelas acusações levianas de xenofobia aos outros, mas sem que nunca os
visados lhes tivessem cobrado os custos antipatrióticos da sua xenofilia.
Há mais.
A persistência em utilizar
conceitos cristalizados dos séculos XIX e XX torna racionalmente impossível
rotular de xenófobo um qualquer europeu que alimente uma qualquer simpatia pelo
presidente norte-americano, tal como por qualquer outro estrangeiro. Logo, será
impensável qualquer empatia transnacional entre movimentos xenófobos.
O milagre dos ‘agentes da
virtude’ é o de tornar aceitável no debate público a coexistência de argumentos
irreconciliáveis.
Pior só mesmo os nacionais que
se sintam legitimamente prejudicados por certos tipos de imigração serem
tratados de forma miserável pelas tradições intelectuais das suas próprias
sociedades. Nunca lhes foi concedido sequer o direito a um vocábulo que exprima
de forma digna esse sentimento coletivo que, em si, nada possui imoral, indigno
ou extraordinário.
Apenas uma das muitas
proscrições do marxismo cultural irmanada com as velhas tradições
inquisitoriais.
8º Argumento: que se lixem
os imigrantes
Os ‘agentes da virtude’ não
percebem que partilham o âmago da politização do fenómeno da imigração.
Denunciam outros por instrumentalizarem politicamente a imigração, mas com o
propósito nada subtil de legitimarem a sua própria radicalização. Isso
significa converter certos tipos de imigrantes em seus filhos pródigos.
Considerando que o antagonismo
constitui a essência das democracias e das sociedades livres, nada de ilegítimo
ocorrerá se o mesmo processo ocorrer em forças políticas de sinal contrário.
Em qualquer dos casos, serão
sempre os imigrantes propriamente ditos que acabarão por pagar os inevitáveis
custos da sua instrumentalização política e eleitoral.
Em termos práticos para a vida
quotidiana, serão tão nocivos os protestos com conteúdo político contra a
entrada de determinado tipo de imigrantes, quanto os protestos da mesma
natureza que pressionem as sociedades a favor da sua entrada. A dimensão dos
danos causados à integração dessas comunidades minoritárias nas sociedades de
acolhimento será diretamente proporcional ao impacto público da sua
instrumentalização política.
Os ‘agentes da virtude’ estão
a demonstrar, por estes dias, as razões de serem imbatíveis também neste
domínio.
A terminar, já são muito mais
as vantagens do que as desvantagens resultantes da vitória eleitoral de Donald
Trump nos Estados Unidos da América. O resto será produto habitual de
circunstâncias em que, para lá da retórica, uns e outros habitualmente não se
distinguem.
Título e Texto: Gabriel Mithá Ribeiro, Observador,
4-2-2017
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O Observador lembra aqueles restaurantes que frequentamos pela qualidade das sobremesas.
ResponderExcluirO resto é comida requentada e, em muitos casos, um nojo. Mas as sobremesas...
E as “sobremesas” são o meu caro, a Helena Matos, o VPV quando decide aparecer... e a grande surpresa: Alberto Gonçalves.
Precisamos que apareça mais vezes.
Alberto de Freitas
Já imaginou, generoso leitor, se em março o Partido da Liberdade do Geert Wilders vence as eleições legislativas na Holanda??
ResponderExcluirJá estou imaginando!...
E em abril na França? Primeiro turno das presidenciais… Se Marine Le Pen vencer, horas depois testemunharemos um fenômeno planetário, a décima primeira praga de Moisés: uma nuvem de caras-de-bunda. E as redações tornar-se-ão picadeiros circenses com a maior concentração de gente plantando bananeira.
ExcluirSim, já estou imaginando! :)
3 ou 4 cidades mexicanas, mais 6 ou 7 cidades do norte nordeste brasileiro matam mais que o terrorismo e as guerras no mundo.
ExcluirComo podem classificar um MURO em uma fronteira de terrorismo?
Se eu fosse presidente de algum país, endureceria minhas entradas no país de cidadãos das latrinas Américas, do estados muçulmanos xiitas.
Os politicamente corretos chama qualquer atitude protecionista de terrorismo.
O incêndio da Boate KISS em Santa Maria foi um ato de terrorismo, mas para esses merdas foi fatalidade.
Minha opinião é que MUROS nos protegem do terrorismo.
Por isso temos em nossas casas e condomínios.
Qualquer dia desses vão escrever que as entradas monitoradas contra armas é um ato de terrorismo.
A primeira cidade mais violenta do mundo é Caracas. Acapulco a segunda e Maceió a terceira.
Escrever para não ir à Acapulco é terrorismo.
Os agentes da virtude querem que nossos países vivam de portas abertas como templos e igrejas, onde até os cães de rua adentram.
Nada contra os cães, mas até a minha cadela vira-latas, só entra em minha casa com permissão.
fui...