Vitor Grando
O contexto em que Descartes
escreve é um contexto onde se vivia uma revolução nas estruturas fundamentais
do conhecimento e de crenças fulcrais da época, em especial na chamada
Revolução Copernicana, que alterou profundamente a compreensão na cosmologia
que vigia desde Aristóteles. Na concepção do filósofo grego, a terra seria o
centro da galáxia e as demais órbitas celestes girariam em torno dela.
Copérnico propõe que não a terra, mas sim o sol seria o centro da galáxia em
torno do qual os corpos celestes – incluindo a terra – girariam. No entanto, à
sua época ele não possuía suficientes evidências para sustentar sua teoria até
que Galileu viria corroborá-lo quase um século depois. É nesse contexto de
profundas mudanças em crenças tão fundamentais que escreve Descartes. A questão
que ele enfrenta, portanto, é como garantir a verdade das nossas crenças dada
tão ostensiva presença de equívocos naquilo que eventualmente tomamos por certo.
Assim como todo grande
filósofo, Descartes também vem sendo interpretado à luz das preferências
filosóficas de cada época. A influência crescente do naturalismo metafísico
talvez tenha obnubilado um aspecto fundamental do projeto filosófico
cartesiano. Ao refletir sobre o fundamental da filosofia cartesiana, o
estudante que tenha aprendido sobre o “pai da filosofia moderna” num curso
introdutório, certamente apontará a epistemologia como esse aspecto central da
filosofia cartesiana. Isto é, Descartes busca responder às perguntas sobre a
possibilidade do conhecimento, sua justificação, a existência do mundo externo.
Mais recentemente, a imagem de Descartes como cientista vem se tornando mais
popular. Os problemas sobre ilusões, sonhos, o gênio maligno, são vistos como
questões preliminares de um sistema científico [1].
Mas talvez os leitores
neófitos de Descartes se surpreenderiam ao ler as Meditações ou o seu Discurso
e encontrar ali algo completamente estranho à maior parte dos projetos
filosóficos contemporâneos à exceção da produção especializada especificamente
em filosofia da religião. A solução cartesiana à questão epistemológica envolve
um apelo direto a Deus como fiador das nossas faculdades cognitivas. A reflexão
sobre Deus e sua natureza, assim, ocupa o próprio cerne de todo seu sistema
filosófico – sem Deus, não há conhecimento. Ademais, e o que soaria deveras
estranho aos ouvidos contemporâneos, ele recorre a uma citação quase direta do
apóstolo Paulo em sua epístola aos Colossenses (vs. 2.3): “E já me parece que
descubro um caminho que nos conduzirá desta contemplação do verdadeiro Deus (no
qual todos os tesouros da ciência e da sabedoria estão encerrados) ao
conhecimento das outras coisas do universo.”[2] Descartes cita a Vulgata (o
texto latino padrão da Bíblia) com uma sutil alteração de scientiae
(conhecimento) para o plural scientiarum (ciências). Portanto, se para Paulo,
Deus (em Cristo) é a misteriosa fonte de toda sabedoria; para Descartes, o
conhecimento de Deus abre o caminho para “as ciências” – o verdadeiro
conhecimento científico. [3]
Há quem desconfie da
sinceridade de Descartes nos seus apelos a Deus como fundamento da segurança
epistêmica. Na sua própria época, ele já fora acusado de dissimular seu
secularismo latente escondendo-o sob uma aparência de piedade cristã em razão
da recente condenação de Galileu Galilei. Jacques Maritain é de opinião que
Descartes era um católico sincero, Karl Jaspers vê o catolicismo de Descartes
como fundamental ao sentido de toda a sua filosofia[4]. O que quer que se pense
acerca da sinceridade de Descartes, o que importa é que Deus – existindo ou não
– é, de fato, elemento central ao seu sistema. Se ele mesmo acreditava no que
diz, é tarefa que podemos deixar à curiosidade dos psicólogos.
O retrato do cartesianismo
como um projeto filosófico que busca investigar as possibilidades de
conhecimento fundamentando-o num alicerce seguro não está completo sem a
consideração do papel que o teísmo exerce na filosofia cartesiana. Sem esse
elemento, toda essa filosofia termina no cogito e resulta no mais radical ceticismo
quanto tudo mais. Ele é, portanto, um filósofo profundamente religioso e não
pode ser compreendido desconsiderando-se suas convicções profundamente teístas.
Descartes, na sua terceira
meditação, após levantar uma série de dúvidas sobre a validade do seu
conhecimento, postula a hipótese de estarmos sendo enganados por um gênio
maligno, que nos criou de tal forma a adquirirmos crenças falsas acerca da
realidade a despeito de nossa convicção de certeza. As Meditações são
endereçadas aos doutores da Faculdade de Teologia de Paris com o objetivo
declarado de tratar da questão de Deus e demais correlacionadas. A filosofia
moderna surge, portanto, numa reflexão sobre a relação do teísmo com a
justificação epistêmica.
Da constatação de que ao longo
de sua vida enveredou-se por um sem número de erros em matéria que se julgava
certo, Descartes busca um fundamento sólido para todo seu edifício
epistemológico. Um fundamento tal como o ponto de apoio de Arquimedes,
suficientemente seguro para mover o mundo ou, no caso, para sustentar em
fundamento sólido toda a estrutura noética de um indivíduo. Assim, o seu método
consiste na suspensão do juízo sobre os próprios fundamentos de nossas crenças
para que, assim, ele possa investigá-los a fim de encontrar o seu ponto arquimediano
sobre o qual poderá repousar sobre sólido fundamento toda sua estrutura
cognitiva. A utilidade de um método de dúvida tão ostensivo que coloque em
xeque todas nossas crenças fundamentais, embora possa não estar muito clara a
princípio, é introduzida como meio de nos libertar de toda sorte de
preconceitos e crenças infundadas para possibilitar que alcancemos aquilo que é
impossível de se ter qualquer dúvida[5]. A partir disso, portanto, será
construído um edifício epistemológico de crenças verdadeiras de modo seguro e
garantido. Aqui nós temos as raízes da estrutura epistemológica do
fundacionalismo clássico, onde a estrutura da justificação epistêmica repousa
sobre um fundamento infalível e incorrigível sobre o qual se apoiam todas as
crenças restantes. Descartes considera que de todos os erros pelos quais
possamos nos enveredar, sejam eles de quaisquer naturezas, este poder de
imaginar e a possibilidade mesma de se enganar presume que seja eu o enganado
e, em sendo assim, se há algum fundamento sólido nessa empreitada seria penso,
logo existo, conclusão alcançada na sua segunda meditação. Esse é o ponto mais
conhecido de sua filosofia, o chamado cogito cartesiano, que se torna seu ponto
de apoio arquimediano sobre o qual será erigida sua epistemologia.
A questão que se coloca agora
é como partindo dessa primeira conclusão pode-se chegar, de modo seguro, às
demais que formarão a nossa estrutura de crenças. Nesse ponto é que o argumento
do erro ostensivo se faz relevante. Depois de apresentar uma série de cenários
que tornariam possível a possibilidade de erro ostensivo em nossas crenças,
particularmente a introdução da ideia de um gênio maligno que nos criou de tal
forma a concebermos de modo equivocado aquilo que nos parece claro e distinto,
ele afirma que para afastar em definitivo tal possibilidade faz-se necessário o
conhecimento de duas verdades: a existência de Deus e a possibilidade de esse
Deus ser um enganador, que são as questões da meditação terceira. A primeira
questão será decidida recorrendo-se à sua versão do argumento ontológico para a
existência de Deus.
Na sua argumentação, Descartes
percebe que em si existe a ideia do infinito, mas dado que eu enquanto ser
humano sou finito essa ideia da infinitude teria de provir de uma outra fonte.
Dado que um efeito não pode ser maior que sua causa, aquilo que originou a
ideia de infinitude teria de ser igualmente infinito. Assim, necessariamente
Deus, considerado como o ser infinito por definição, existe. A segunda questão
é uma derivação da resposta à primeira. Se admite-se o argumento ontológico
como prova da existência deste ser maior do qual nenhum pode ser concebido – na
clássica definição anselmiana – dizer que ele é infinito nesse sentido é dizer
que ele é dotado de todas as perfeições. Ainda que esse ser pudesse ter nos
criado com estruturas cognitivas nada confiáveis, isso jamais poderia fazer
parte de sua vontade, que é, como se provou, perfeita e o querer enganar não
seria uma perfeição, mas um defeito[6]. Assim, sendo criado por Deus, eu sou
criado de tal maneira que minhas crenças são confiáveis, já que é o próprio
Deus o garantidor de sua confiabilidade.
Assim, o recurso a Deus se
torna elemento fulcral ao cartesianismo, sem o qual não se pode ir além da
conclusão de que eu existo neste dado momento de reflexão. Nesse ponto, o
leitor se questionará sobre a razoabilidade da conclusão, já que o próprio
Descartes inicia seu pensamento apontando que estar equivocado é uma marca
constante na sua vida até o presente momento. Mas se Deus é o garantidor da
confiabilidade de nosso processo cognitivo, como entender o erro? Essa questão
será tratada na quarta meditação, onde Descartes introduz a distinção entre o
intelecto e a vontade. “Donde nasce, pois, meu erro?”, ele pergunta. A garantia
divina se estende tão somente àquelas crenças que são claras e distintas, como
ele afirma na quarta parte do Discurso:
Pois, em primeiro lugar,
aquilo mesmo que há pouco tomei como uma regra, a saber que as coisas que
concebemos de maneira muito clara e distinta são todas verdadeiras só é seguro
porque Deus é ou existe, e porque ele é um ser perfeito, e porque tudo que está
em nós vem dele. E assim resulta que nossas ideias ou noções, sendo coisas
reais e provenientes de Deus em tudo o que possuem de claro e distinto, só
podem nisto ser verdadeiras. [8]
No entanto, embora o intelecto
garanta tão somente àquilo que é claro e distinto, a vontade é livre para se
estender e formular juízos sobre aquilo que é obscuro. Quanto a isso, ele diz:
A vontade é muito mais ampla e
extensa que o entendimento, eu não a contenho nos mesmos limites, mas estendo-a
também às coisas que não entendo; das quais, sendo a vontade por si
indiferente, ela se perde muito facilmente e escolhe o mal pelo bem ou o falso
pelo verdadeiro. O que faz com que eu me engane e peque [9].
Dada a extensão da vontade, a
ela cabe afirmar ou negar aquelas coisas que o intelecto só tem uma compreensão
confusa e indistinta. É nesse sentido que Descartes afirma que a vontade é
infinita, pois não concebemos nenhum ser cuja vontade possa se estender a algo
sobre o qual a nossa vontade também não possa se estender. Assim, ao passo que
temos uma distinção quantitativa entre nosso intelecto e o intelecto divino, a
nossa vontade é tão infinita quanto a vontade divina, já que não concebemos
nada sobre o qual a vontade de Deus possa se estender afirmando ou negando que
a nossa também não possa fazer o mesmo. A vontade sendo livre é livre para se
estender para muito além daquilo que o intelecto pode conceber de modo claro e
distinto. O erro é derivado do mau emprego das relações entre vontade e
intelecto, quando aquela se estende sobre aquilo que o intelecto não garante.
Assim, o erro tem origem última no mau uso de nosso livre arbítrio. É
justamente quando a vontade afirma algo que o intelecto não nos permite
conceber de modo claro e distinto. Se nós nos ativéssemos apenas àquilo que é
claro e distinto, nós jamais erraríamos. Agora, quanto à pergunta sobre o por
que Deus nos criou com tal imperfeição, Descartes afirma que não nos cabe
tentar descobrir mais do que aquilo que Deus revelou. Com isso, Descartes
isenta Deus da responsabilidade pelos nossos inúmeros equívocos cognitivos e
encontra a origem do erro no mau uso de nosso livre-arbítrio.
Assim em Descartes, o
ceticismo é resolvido com recurso a uma metafísica teísta sem a qual, pensa
ele, não se é possível garantir a nossa própria racionalidade. O projeto
cartesiano é um exemplo de como o teísta pode explorar as relações de seus
pressupostos fundamentais com toda sua filosofia. Poucos admitiriam a solução
cartesiana ao problema do ceticismo hoje, ao menos não da forma que ele coloca.
No entanto, a introdução de Deus como elemento fulcral e indispensável na
filosofia de uma figura tão importante no nascimento da filosofia moderna não
deixa de ser um incentivo a reformulação de uma filosofia de caracterização
marcadamente teísta.
Se em Descartes a autoridade
da Bíblia ou da Igreja sai de cena apenas para dar lugar ao próprio Deus
acessível estritamente por meio da razão, a negação da metafísica teísta parece
vir acompanhada da negação do próprio conhecimento ou de qualquer valor
objetivo. Essa questão tão bem colocada por Descartes parece ter sido
sumariamente ignorada no século XX. Ao menos, tornou-se difícil passar incólume
recorrendo a Deus para sustentar qualquer sistema filosófico. Mas, como no
mecanismo inconsciente denominado por Freud de recalque, talvez Deus não possa
ser excluído de nossas filosofias sem consideração pelo alto preço a pagar
pelas implicações disso.
Se Descartes foi bem-sucedido
em sua prova da existência de Deus, é ponto quase que unanimemente rejeitado;
se ele foi bem-sucedido em sua argumentação sobre a necessidade da
fundamentação teísta da nossa estrutura epistemológica é uma hipótese mais
razoável, ainda que talvez ele não tenha sido muito convincente ao desenvolver
sua epistemologia a partir daí. No entanto, o retorno a Descartes nos lembra
que os rumores da morte de Deus talvez tenham sido bastante exagerados e que a
sua existência permanece uma questão importante de cuja resposta resultará
implicações para todo nossos sistemas de crenças. Assim, parafraseando C.S.
Lewis: Deus, se não existir, não tem valor; se existir, tem valor infinito. A
única coisa que lhe é impossível é ser “mais ou menos” importante.
Título e Texto: Vitor Grando, WordPress, 22-2-2017
[1] COTTINGHAM, John. The Role of God in
Descarte’s Philosophy. In: BROUGHTON, Janet; CARRIERO, John. Blackwell
Companion to Descartes. West Sussex: Wiley-Blackwell Publishing, 2011.
[2] DESCARTES, René. Meditações. Coleção Os
pensadores, vol. XV. Trad. J. Guinsburg e Bento Prado Jr. São Paulo: Abril
Cultural, 1973. p. 123.
[3] COTTINGHAM, John. Op. cit..
[4] STEINER, Gary. René Descartes. In: OPPY,
Graham; TRAKAKIS, Nick. Early Modern Philosophy of Religion. Durham:
Acumen Publishing Limited, 2009, pp. 101-112
[5] DESCARTES, René. Meditações. Coleção Os
pensadores, vol. XV. Trad. J. Guinsburg e Bento Prado Jr. São Paulo: Abril
Cultural, 1973. p. 87.
[6] Cf. ibid, p.123, §40, p. 123, §3.
[7] Na réplica às objeções, Descartes
explica que tais crenças são de tal natureza que não podemos pensar nelas sem
acreditar que sejam verdadeiras. São o que chamaríamos de crenças infalíveis
ou incorrigíveis. Cf. Ibid, p. 171.
[8] DESCARTES, René. Discurso do Método.
Porto Alegre: L&PM, 2008, p.76.
[9] Ibid, p. 127.
Bibliografia
COTTINGHAM, John. The Role
of God in Descarte’s Philosophy. In: BROUGHTON, Janet; CARRIERO,
John. Blackwell Companion to Descartes. West Sussex: Wiley-Blackwell
Publishing, 2011;
DESCARTES, René. Discurso do
Método. Porto Alegre: L&PM, 2008, p.76;
____________, René. Meditações. Coleção
Os pensadores, vol. XV. Trad. J. Guinsburg e Bento Prado Jr. São Paulo: Abril
Cultural, 1973;
STEINER, Gary. René
Descartes. In: OPPY, Graham; TRAKAKIS, Nick. Early Modern Philosophy
of Religion. Durham: Acumen Publishing Limited, 2009, pp. 101-112;
WILLIAMS, Bernard. Descartes: The
Project of Pure Enquiry. Nova Iorque: Routledge Classics, 2005.
Parabéns pelo texto! Muito bom!
ResponderExcluirValdemar
QUEM SOU EU PARA NÃO GOSTAR DE DESCARTES?
ResponderExcluirMAS NÃO GOSTO.
Não se deve perder algo de exclusivamente humano:
- a capacidade de projetos de vida futuros enquanto somos sociedade.
Até que ponto podemos estar conscientes se perdemos o que planejamos? Poderá imaginar-se como um ser consciente em si mesmo, tal como qualquer de nós pode ser?
quem em sua sensatez pode afirmar que sua alma foi prejudicada ou que foi perdida?
Se tudo fosse assim simples,Será que Descartes tivesse todo conhecimento e possuísse os conhecimentos que hoje possuímos sobre neurobiologia? Afirmaria tudo isso.
Ou mandaria examinar nossa da glândula pineal?
São apenas questionamentos tirados do livro "Os erros de Descartes".
Fico com o autor desse livro.
Fui,mas posso voltar...