Vitor Cunha
A transição
progressiva do meio primordial de entretenimento, da televisão para as redes
sociais, acarretou mudanças que, só agora, com a consolidação decorrente da
massificação, começamos a observar com clareza. E que começamos então a
perceber? Fake News.
Na era anterior, a do consumo
unilateral de conteúdos, a premissa básica era a construção de ficções que
pretendiam preencher as necessidades do consumidor. Tal como com o Evangelho —
a linguagem que unifica o grupo de crentes —, um produto televisivo produz
adendas à linguagem comum — isto quando não a altera — para os telespectadores
(e, consequentemente, para a sua rede de relações humanas) através da
solidificação da cultura pop, da sua terminologia e da sua moral
inerente, no caso em que esta existe. A comunidade, englobando o lastro e não
necessariamente obstante da sua tradição, foi sendo dotada de conceitos e
léxicos comuns: desde a especulação sobre a morte e regresso de Bobby Ewing ao
mundo dos vivos, ao colapso do romantismo associado ao programa espacial
norte-americano após a explosão do vaivém Challenger, em 1986. “J.R.” tornou-se
sinédoque de impiedoso magnata do petróleo1; “soup nazi” trouxe para
o léxico comum a contração de nacional-socialismo em nova acepção designativa
de excêntricos intransigentes2. Da mesma forma, ao nível
semântico, é perfeitamente legítimo especular que a americanização consistente
em necessidade de explicação para factos não correlacionados decorre de
programas como o The Oprah Winfrey Show3 — matou o filho porque
foi violada pelo tio há mais de vinte e cinco anos; roubou o banco porque a mãe
negou-lhe um gelado em 1982.
Independentemente do efeito
que a televisão teve (e ainda tem) na comunidade, ver televisão — assistir —
sempre foi um ato individual: não é de espantar que, ainda hoje, o maior número
de horas em frente ao aparelho seja oriundo de pessoas envoltas numa mística
(e, muitas vezes, na sua realidade) de solidão — reformados, pessoas em
habitação arrendada há décadas, pais e avós com filhos e netos que dispensam a
labuta diária da preparação para o dia escolar, donas de casa, desempregados,
solteiros sem filhos e pessoas institucionalizadas ou em internamento. Não
vemos televisão para estar com os outros, vemos, precisamente, para que
possamos ver os outros sem sermos vistos4. Porém, tornou-se
paradigmático que o solitário em frente à televisão assistisse à vida dos
outros através da barreira adicional à realidade: não é a vida dos outros que
passa num episódio televisivo, é uma iteração possível da vida de outro
interpretada por um ator. Da vida ficcional — portanto, falsa — interpretada
por um ator, chega-se às notícias fictícias — portanto, falsas — interpretadas
pelo filtro crítico e intrinsecamente dotado de ideologia, preconceito e agenda
do pivô e sua redação.
Com o advento das redes
sociais, o paradigma passou do sentido único, o de espectador de conteúdos
alheios, para o de re-publicador com visão crítica — se bem que igualmente
dotada de ideologia, preconceito e agenda — do conteúdo original. Esta
multiplicação de interpretações condicionou não só a forma como as pessoas
consomem notícias e entretenimento como a forma de apresentação desse conteúdo.
Donald Trump percebeu o potencial ao seu dispor para usar o descontentamento
contemporâneo pela difusão previamente digerida de factos, já interpretados ao
bel-prazer da figura sinistra com poder para os transmitir televisivamente,
como forma de alcançar a eleição presidencial. Num registo oposto, o da
conquista de simpatia pela interpretação fofinha dos factos, indo de encontro à
opinião mais favorável sem grande comprometimento com a verdade e o rigor,
Marcelo Rebelo de Sousa usou exatamente a mesma ferramenta para alcançar a
presidência em Portugal.
Que se tente abafar o caso
Caixa Geral de Depósitos, fingindo que “já passou”, não é de surpreender. Que
se ache, com o esmorecer pretendido, que António Costa sai sem mácula na
percepção pública é me parece demasiado despropositado, em particular para quem
“ganhou” as eleições recorrendo a um expediente com custos elevados, quer pela
dependência governamental da sinistra extrema-esquerda, quer pela forma com que
as notícias são interpretadas na era atual, pela desconstrução das suas
intenções. É curioso que, após décadas de Derrida a reinventar géneros,
identidades sexuais e multiplicações de aplicações para “é tudo uma construção
social”, sejam, precisamente, os progressistas as vítimas do escrutínio
decorrente do pós-estruturalismo aplicado à comunicação social.
Título e Texto: Vitor Cunha, Blasfémias,
17-2-2017
1 Personagem
da série Dallas (1978)
2 Termo cunhado na série Seinfeld (1989)
3 Talk show que esteve 25 anos no ar. The Oprah Winfrey Show (1986). O termo americanização surge, precisamente, porque a tradição europeia nas artes (e, consequentemente, no entretenimento) é a de dispensa de explicações. Como exemplo, o cinema de Michael Haneke ou a literatura de Franz Kafka.
4 Sobre o tema, recomendo a leitura do artigo “Eunibus pluram: television and U.S. fiction” de David Foster Wallace, publicado em junho de 1993 na revista The Review of Contemporary Fiction.
2 Termo cunhado na série Seinfeld (1989)
3 Talk show que esteve 25 anos no ar. The Oprah Winfrey Show (1986). O termo americanização surge, precisamente, porque a tradição europeia nas artes (e, consequentemente, no entretenimento) é a de dispensa de explicações. Como exemplo, o cinema de Michael Haneke ou a literatura de Franz Kafka.
4 Sobre o tema, recomendo a leitura do artigo “Eunibus pluram: television and U.S. fiction” de David Foster Wallace, publicado em junho de 1993 na revista The Review of Contemporary Fiction.
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