Rui Ramos
O livro de Cavaco Silva mostra como no
tempo de Sócrates o presidente ainda foi, dentro do país, o maior contrapeso do
governo. Sem Cavaco Silva, teria sido pior
No primeiro volume das suas
memórias presidenciais, Cavaco Silva lembra que foi primeiro-ministro num tempo
em que todos os políticos portugueses teriam desejado ser primeiros-ministros.
O seu governo compreende alguns dos anos de maior prosperidade do século XX em
Portugal. Pelo contrário, foi presidente na pior de todas as épocas. Encontrou
uma crise que nunca mais acabou e, durante o seu primeiro mandato (2006-2011),
a governação entregue a José Sócrates, “uma pessoa em que não se podia confiar
e não olhava a meios”.
Que deveria ter feito o
presidente? Em Quinta-Feira e Outros Dias (Porto Editora),
Cavaco Silva explica o que fez e porquê. Começou a presidência muito consciente
da degradação das finanças e da economia. Num primeiro momento, dispôs-se a
colaborar com um governo que, apoiado numa maioria absoluta, prometia “decidir,
fazer e reformar”. Mas quando se tornou claro que tipo de pessoa era Sócrates,
não o demitiu, não dissolveu a Assembleia da República (antes de o
primeiro-ministro se demitir), nem sequer terá vetado tanta legislação
governamental como se poderia esperar. Também não telefonou a jornalistas, não
comentou notícias, não inventou enredos, nem montou uma “máquina” para
contrariar a “máquina tenebrosa” da propaganda socrática. Quer dizer que não
fez nada? Não.
O livro não é um ajuste de
contas com Sócrates. É, através de exemplos, uma explicação da escolha
fundamental de Cavaco Silva. Enquanto presidente, preferiu os “poderes
implícitos de influência”, através do contato regular com o governo, aos
“poderes negativos”, como os vetos legislativos ou a dissolução do parlamento.
Durante cinco anos, enfrentou Sócrates todas as quintas-feiras, valendo-se da
sua experiência e estudo. Entre 2006 e 2011, a presidência terá inspirado
alterações em um quinto dos diplomas governamentais. Mas o sinal mais claro da
importância do presidente está talvez no modo como o socratismo o promoveu, em
2009, a inimigo principal.
Cavaco Silva fez esta coisa
muito simples, mas que parece não acabar de espantar a classe política: levou a
sério as instituições do Estado e atuou através dos canais formais, sem
recorrer aos atalhos da intriga e da demagogia. Convencido de que a sua
influência seria tanto mais efetiva quanto discreta, foi reservado. Privou-se
de “protagonismo mediático”, para “desespero de alguns dos meus assessores”.
Deveria ter dado espetáculo? Deveria ter enveredado pelo confronto?
Talvez algum populismo
presidencial tivesse ido ao encontro de muitos descontentamentos. Mas para quê?
Para se tornar mais um “fator de incerteza”? Para negar os princípios da sua
candidatura (respeito pelas competências dos órgãos de soberania, defesa da
estabilidade, cooperação institucional, independência em relação aos partidos),
e protagonizar a presidencialização do sistema político? Que poderia ter
conseguido? Talvez acrescentar uma ruptura política à derrocada económica e
financeira, pois não é difícil imaginar um Sócrates demitido a mobilizar o
facciosismo das esquerdas contra o primeiro presidente em que o PS não mandou
votar. Como se teria negociado o auxílio internacional nesse caos? Cavaco Silva
não quis correr esses riscos. Não quis fazer história à custa do país.
O país, com a ajuda de Cavaco
Silva, está hoje a pagar menos alguns daqueles erros a que o socratismo chamava
“investimentos”. Como ele próprio reconhece, não evitou tudo o que de mau se
passou. Quase de certeza, ninguém poderia ter evitado. Durante muito tempo, as
oposições não foram alternativa. As autoridades europeias deram, como sempre,
sinais equívocos. Magistrados e jornalistas investigaram, mas sem
consequências. O presidente ainda foi, dentro do país, o maior contrapeso do
governo. Sem Cavaco Silva, teria sido pior. “Fui presidente quando devia
sê-lo”, diz a certa altura. E foi.
Título e Texto: Rui Ramos, Observador,
17-2-2017
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