Alberto Gonçalves
Temos gastronomia, hospitalidade, rotundas
e paisagem. E temos, sobretudo, a garantia de que em Portugal nunca caberá um
populista do calibre do sr. Trump: os populistas caseiros já ocuparam tudo.
A acreditar na quantidade de
americanos que prometeu deixar o país se o extraordinário sr. Trump chegasse à
Casa Branca, seria de esperar que os EUA fossem hoje um imenso deserto. Não é o
caso. Claro que demasiadas pessoas correram para os aeroportos nas últimas
semanas. Mas foi apenas para protestar às restrições à imigração, prova da
maldade intrínseca do novo presidente e, em boa parte, herança do anterior. Num
ápice, a rapaziada regressou à vidinha habitual: berrar na rua, destruir
propriedade alheia, berrar na rua, impedir homossexuais inoportunos de falar em
Berkeley, berrar na rua. Mesmo a atriz Meryl Streep, que segundo a própria
integra uma das classes mais discriminadas do país (os presunçosos?), continua,
ao que tudo indica, a habitar a sua mansão de Los Angeles, curiosamente rodeada
por muros de betão.
De facto, o número de cidadãos
de partida para o exílio é tão baixo que o Washington Post se viu e desejou
para descobrir um único exemplo. Após buscas aturadas, e confessamente
difíceis, lá encontraram o casal Yeager, ela reformada e ele um escritor que
ganha dinheiro a criticar o “consumismo”. Os Yeagers colocaram a casa à venda
para fugir à “devastação eleitoral” (cito) e passar os próximos 4 ou 8 anos no
estrangeiro. Onde? As hipóteses são múltiplas: Panamá, Costa Rica, Nova
Zelândia, Malásia, Vietnam, Tailândia, Croácia, Polónia, Espanha ou, talvez,
Portugal.
Repararam na honra?
Entretanto, o Huffington Post
meteu-se no assunto. Entre parêntesis, noto que o Huffington Post é um site
“informativo”, do género de informação que, quando o dono da Starbucks anuncia
a contratação de dez mil refugiados e as ações da empresa se despenham a pique,
faz uma notícia intitulada: “Apoiantes de Trump: tentativa de boicote à
Starbucks falha com estrondo”. Fora de parêntesis, este baluarte do grande
jornalismo aproveitou a história dos Yeagers, retirou-lhe tipicamente a graça e
apresentou-a como modelo a seguir. A fim de ajudar ao êxodo dos EUA, sugeriu
(os desorientados agradecem sugestões) onze destinos ideais. Nesses
paradisíacos destinos, há ditaduras ou democracias questionáveis, regimes
alérgicos aos famosos direitos humanos, albergues exóticos, cenários de
homicídios, entrepostos do terrorismo islâmico, a “neoliberal” Irlanda, outra
vez a remota Nova Zelândia. E outra vez Portugal.
Convém esclarecer os
candidatos que, ao primeiro impacto, não distinguirão Portugal da América.
Também os nossos “media” estão repletos de criaturas empenhadíssimas em
convencer os simples, a bem ou a mal, de que o sr. Trump é a reencarnação de
Hitler ou o Belzebu alaranjado (a teoria divide-se). As semelhanças, porém,
terminam aqui. Ou na virtual “megafábrica” da Tesla que se converteu num
“stand” de automóveis a sério. Sob essa superfície, somos uma sucessão de
encantos.
Temos futebol, ou melhor,
conversas acerca de árbitros, dirigentes e autocarros. Temos televisões a
avisar que não nos devemos aproximar do mar revolto exceto para filmar o mar
revolto e enviar-lhes o vídeo. Temos um ex-primeiro-ministro, vários
ex-banqueiros e muitas futuras ex-personalidades envolvidas num folclórico rol
de trapaças, nas quais metade da imprensa nem toca. Temos deputados que
acreditam em Marx e em elfos que querem “debater” e legalizar a eutanásia – de
terceiros. Temos uma dívida pública que cresce com galhardia e não incomoda
vivalma. Temos um governo legitimado pelo apoio de partidos leninistas que
juram não apoiar o governo. Temos um presidente optimista e afetuoso até para
com o “rating” de “lixo”. Temos hora marcada com uma bancarrota que a ninguém
aflige. Temos calor (?), gastronomia, hospitalidade, rotundas e paisagem. E
temos, sobretudo, a garantia de que em Portugal nunca caberá um populista do
calibre do sr. Trump (que o parlamento formalmente condena): os populistas
caseiros já ocuparam tudo. Os refugiados dos EUA podem vir à vontade.
Ambos.
Notas de rodapé:
Em duas ocasiões recentes, o
eng. Guterres referiu-se às origens judaicas do Monte do Templo, em Jerusalém.
Indignada, a Autoridade Palestiniana invocou uma resolução da UNESCO e exigiu
um pedido de desculpas. Quem tem razão? Ambos. O atual Muro das Lamentações é
evidentemente o que sobra do Segundo Templo, ou ao que consta uma parede
contígua. Por outro lado, há meses que o braço da ONU para a Educação, a
Ciência e a Cultura (a designação é irónica) passou a referir-se ao Monte do
Templo exclusivamente pelos seus nomes árabes, de modo a enterrar a
desagradável conexão hebraica e a legitimar as pretensões da Fatah e similares.
Perante isto, resta ao eng.
Guterres uma de duas saídas. Ou manda os palestinianos à fava, por respeito à
História e – eis um termo em desuso – à verdade. Ou ata uma corda ao pescoço e
parte de joelhos ao encontro do sr. Abbas, por respeito à utilíssima
instituição a que preside e a que o pérfido sr. Trump, para consternação
universal, ameaça cortar subsídios. Até ver, o eng. Guterres apenas lamentou
(longe do Muro) as políticas do último, e não abriu a boca sobre o primeiro. É
assim que se vai longe.
Título e Texto: Alberto Gonçalves, Observador,
4-2-2017
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