Paulo Tunhas
Se uma pessoa se define inteiramente como
“anti” qualquer coisa (“antirracista”, por exemplo), tende a encontrar racistas
em todo o lado. O macarthismo é uma disposição de espírito fácil de adquirir.
Com o tempo, o tempo muda e
muda a nossa visão dos tempos. Muda a nossa percepção subjetiva deles, porque,
entre outras coisas, muda o nosso corpo e não somos já os mesmos. No princípio,
o corpo era uma entidade una e indivisível, que funcionava, como lhe competia,
como um todo. Com a idade, pouco a pouco, ameaça transformar-se num aglomerado
de órgãos diversos, cada um correndo para o seu lado, subitamente dotados de um
destino autónomo, conspirando, suspeita-se, para a ruína do conjunto. Como não
havia de mudar a nossa percepção do tempo e dos tempos assim? O estado do corpo
dita em larga medida o modo como se vive a duração e o modo como se vive a
duração determina a percepção dos tempos.
Acresce a isto a nossa
história pessoal. Tomemos o meu exemplo. Nasci em 1960 e durante uma longa
fatia da minha vida julguei ter nascido muito depois da Segunda Guerra Mundial.
Hoje, vejo-me como tendo nascido quase junto ao seu fim. O que era distante
tornou-se próximo. E, de uma certa maneira, isso obriga-nos a entender
diferentemente os tempos em que dantes vivemos: percebemos de modo diverso as
razões de aqueles tempos serem como eram, os motivos da sua singularidade. Com
o tempo, mudou o modo como vemos o tempo a que chamamos nosso.
Depois, com o tempo, muda o
mundo à nossa volta. Desapareceram pessoas e coisas, apareceram outras pessoas
e outras coisas. Fiquemo-nos pelas coisas. Mais um exemplo. De um dia para o
outro, descobrimos que uma casa que conhecíamos perfeitamente desapareceu e em
seu lugar se encontra um edifício completamente diferente. Tentamos pensar na
casa que já não lá está e pela qual passamos vezes sem conta e verificamos que
ela deixou de existir no nosso espírito, sem deixar um só traço na memória.
Sentimento de culpa: não prestamos suficiente atenção às coisas. Mas sentimento
de culpa, ao mesmo tempo, exagerado: no fundo, cada um de nós só pode prestar
verdadeiramente atenção a um número relativamente restrito de coisas.
As mudanças no mundo à nossa
volta podem, é claro, ser óptimas. Larga parte da vida das pessoas a partir de
certa idade foi vivida sem sequer ser concebível a simples possibilidade de
estar na rua a levantar dinheiro de uma parede e a falar ao telefone ao mesmo
tempo. O exemplo poderá parecer pueril, mas não creio que o seja, embora seja
certamente menor e não o mais nobre. Mas o que isto mudou (para o bem, embora
certamente também para o mal nalguns aspectos) na vida das pessoas nem se diz.
Uma coisa é certa. A partir de
certa altura, há demasiadas mudanças à nossa volta para nos ser impossível não
nos darmos conta que o mundo mudou e que fomos testemunhos dessa mudança. O que
convida a revisitarmos as mudanças do mundo por que passámos e a procurar perceber
quais aquelas das quais tivemos consciência, quais as que nos foram
imperceptíveis.
Nas palavras de um filósofo,
se fomos entidades despertas, se fomos entidades adormecidas. Se levarmos o
exercício a sério, saímos dele com uma percepção do tempo histórico que não é
coincidente com a nossa percepção subjetiva do tempo: nem com a percepção do
tempo que o nosso corpo permite, nem com aquela a que nos leva a nossa história
pessoal. O mundo exterior existe mesmo. Com o tempo, mudam os tempos.
O lugar onde isso se verifica
talvez melhor é no plano das crenças, no modo como elas mudam. Não digo, é
claro, que não haja crenças que não variam. Não digo sequer que muitas
variações de crenças não sejam, em larga medida, caracterizadas pela projeção
sobre objetos diferentes de crenças que são essencialmente as mesmas. Há
demasiados exemplos de casos assim para que o possamos negar. Mas, é claro, as
crenças mudam mesmo. Entre outras, crenças de comportamento – o que se deve e
não se deve fazer – e crenças de linguagem – o que se pode e o que não se pode
dizer. Nos anos sessenta do século passado, por exemplo, havia nos jardins do
Palácio de Cristal, no Porto, duas muito reduzidas jaulas, quase mergulhadas na
espessa neblina do rio Douro, onde tinham metido um macaco e um leão. A toda a
gente, naquela altura, o espetáculo parecia de uma impecável normalidade. Hoje,
de acordo com as nossas crenças, a barbaridade da coisa é patente. Na altura,
naquela sociedade, estava longe de o ser. É um exemplo entre muitos, é claro,
mas creio que é um exemplo paradigmático.
O espetáculo no domínio da
linguagem é particularmente fascinante. A par de palavras que desaparecem por
assim dizer naturalmente da nossa linguagem quotidiana, há palavras que, por
várias razões, e quase literalmente (“Se quiseres falar assim, vai para outro
lado”), são ostracizadas. Tal como as crenças relativas ao comportamento, as
crenças relativas às palavras são complexas. Estou muito longe de considerar a
maior parte delas malfazeja. E o mesmo valerá, com toda a probabilidade, para
as que em seguir vierem. Mas, ao mesmo tempo, não conheço razão alguma que nos
deva levar a considerá-las como, por definição, excelentes e indisputáveis.
Um critério para avaliar o
grau de aceitação das novas crenças, um critério negativo, é o do ridículo:
quando a nova crença é ridícula, há boas razões para a rejeitar. Claro que é um
critério muito falível, já que a própria caracterização do ridículo é sempre
contextual. Por isso mesmo, vale apenas o que vale e não convém abusar dele.
Convém ser latitudinário. Por mim, por exemplo, e isso vale tanto para as
crenças relativas ao comportamento como até para as crenças relativas à
linguagem, estendo este estado de espírito ao chamado “jornalismo de causas”. É
verdade que parece muitas vezes ridículo. E é verdade, também, que se uma
pessoa se define inteiramente como “anti” qualquer coisa (“antirracista”, por
exemplo), tende, até pela preservação da sua identidade pessoal e pela
particular natureza da sua especialidade, a encontrar racistas (ou xenófobos,
ou outra coisa qualquer) em todo o lado. O macarthismo é uma disposição de
espírito fácil de adquirir por qualquer um. Passa-se do ridículo ao grotesco. E
o grotesco é geralmente o anúncio do terrível. Mas, quando se fica aquém do patamar
do grotesco, pode bem ser que, somando tudo, os efeitos dessas crenças sejam
benéficos. Quem sabe? Nascemos em tempos diferentes e por vezes percebemos
melhor o que perdemos do que aquilo que ganhamos. Sem excluir certamente a
possibilidade de aquilo que se perde ser uma perda que não traz consigo ganho
de qualquer espécie.
Uma coisa, no entanto, torna
certas práticas deste tipo perigosas. É quando elas se encontram subordinadas a
uma crença maior: aquela segundo a qual o curso da história obedece a um
sentido necessário e tudo o que escapar a esse sentido se encontra afetado de
ilegitimidade. É uma crença de aquisição fácil e mais poderosa do que parece.
Muito novinho, quando li algum Marx pela primeira vez, pareceu-me uma
evidência, e quem me negasse a existência do tal sentido da história era como
se me negasse a existência da mesa à minha frente. Passou-me muito depressa a
alucinação, graças a Deus, mas há muita gente a quem infelizmente nunca passou.
Para quem pensa assim, a relação com as crenças, e em primeiro lugar as crenças
políticas, é uma relação que obedece a um modelo de necessidade.
Dito de outra maneira: a
fronteira entre as crenças legítimas e as crenças ilegítimas é uma fronteira
perfeitamente determinada, “científica”. Dito ainda de outra maneira: a
política enquanto tal, que vive do confronto de crenças opostas, rodeadas de
indeterminação, encontra-se ela própria deslegitimada na sua essência. O que
conta é a vitória (necessária) da crença que a ciência garante. Passando para
casos concretos, é isso que subjaz a maior parte das vezes à crítica da
“democracia formal”, e, por exemplo, ao apoio ao regime de Maduro na Venezuela.
Porque a democracia formal instaura uma igualdade no valor das crenças que vai
contra a ciência que nos assegura que só algumas são efetivamente legítimas e
porque o regime de Maduro vai verdadeiramente no sentido da história.
Sofisticações mais ou menos recentes desta tese não mudam em nada o seu
carácter fundamental.
Mesmo para alguém (é o meu
caso) para quem a palavra “progresso” aplicada aos costumes e às instituições
faz todo o sentido, embora de um modo radicalmente diferente e muito mais
problemático do que quando se fala de progresso no domínio das ciências, vale a
pena exercitar a reserva face à convicção segundo a qual tudo é feito de
“avanços” dotados de uma bondade intrínseca. Sobretudo quando os arautos desses
“avanços” pretendem obliterar a materialidade histórica do passado e traçam uma
linha feita de certezas entre as boas crenças e as más crenças. Esquecem que os
tempos trazem sempre outros tempos e que as crenças, os valores, desses novos
tempos serão com toda a probabilidade, diferentes dos deles. A falta de
compreensão pelo passado traz consigo uma muito curiosa rejeição do futuro. É
uma forma comum de ignorância.
PS. Num
post scriptum à sua coluna de ontem no Observador, Luís
Aguiar-Conraria, convida-me, a pretexto de um passado artigo meu sobre a
necessidade de as comunidades islâmicas condenarem o terrorismo praticado em
nome do Islão, a demarcar-me eu próprio do assassino racista, adepto da
supremacia da raça branca, de Charlottesville. Com toda a franqueza: espero que
esteja a brincar.
Título e Texto: Paulo Tunhas, Observador,
17-8-2017
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