João Pedro Marques
Se o fito de Fernanda Câncio for esclarecer
a opinião pública, então deve parar um pouco para se informar melhor. Mas se a
sua intenção for flagelar Portugal, então não precisa de se informar.
A jornalista Fernanda Câncio,
que, em Abril de 2017, na sequência da ida de Marcelo Rebelo de Sousa à ilha de
Gorée, no Senegal, foi uma das iniciadoras do debate em torno da questão da
antiga escravatura, esteve longos meses alheada desse tema, mas regressou agora
a ele num artigo publicado no DN, no qual fez duas
afirmações enganadoras. Disse, nomeadamente, “que Portugal sozinho (…) foi
responsável por quase metade dos 12,5 milhões de negros escravizados e
traficados de África para as Américas entre 1501 e 1875”; e acrescentou que “o
grosso desse recorde mundial decorreu entre 1826 e 1850, ou seja, já após a
mítica abolição da escravatura por Pombal (1761)”.
Comecemos pelo fim. Há, da
parte de Fernanda Câncio, um mal-entendido quanto ao alvará abolicionista de
Pombal. O dito alvará nada tinha a ver com tráfico transatlântico, aplicava-se
apenas a Portugal metropolitano. Mas não é mítico. Existiu e produziu efeito.
Deixaram de se importar escravos para o território metropolitano e um alvará
posterior (1773) extinguiu gradualmente o estado de escravidão em Portugal
continental. Foram os primeiros passos no sentido da abolição que, no âmbito do
império português, só décadas depois seriam continuados. Mas esses passos deram-se
e não foram revertidos. Fernanda Câncio parece ignorar que as leis
abolicionistas foram muitas vezes graduais e sucessivas, abolindo parcela a
parcela. A própria Inglaterra, a incontestável campeã do abolicionismo, aboliu
o seu tráfico de escravos em anos sucessivos e não de uma só vez. Fernanda
Câncio parece ignorar, também, que na terminologia do século XVIII, a palavra
escravatura significava geralmente tráfico de escravos (e não escravidão, como
significa para nós). Daí, talvez, alguma da sua confusão.
Mas a mais importante e mais
enganadora confusão de Fernanda Câncio é a que a leva a afirmar que Portugal
terá sido o recordista de negros escravizados e traficados de África para as
Américas, sendo que o grosso desse horrível recorde teria acontecido entre 1826
e 1850. A jornalista esqueceu-se que nesse período Portugal já não tinha
colónias nas Américas. Como é do conhecimento geral, o Brasil tornara-se
independente em 1825. O que quer dizer que o grosso do tráfico de escravos foi
feito por e para um novo país chamado Brasil. Ou seja, não foi Portugal sozinho
que escravizou e traficou 5,8 milhões de pessoas africanas. Muito menos foi
Portugal sozinho que escravizou e traficou os 2,5 milhões de africanos que, no
século XIX, atravessaram o Atlântico em direção ao Rio, a Pernambuco, à Bahia.
Foram Portugal, o Brasil e muitas entidades políticas africanas, que já tinham
escravizado aquelas pobres pessoas antes de as venderem para a costa e, daí,
para a coberta dos navios negreiros.
Dir-se-á que boa parte do
tráfico de escravos realizado entre 1826 e 1850 foi levado a cabo por negreiros
portugueses residentes em cidades brasileiras, homens como José Bernardino de
Sá, Tomás da Costa Ramos, Manuel Pinto da Fonseca e vários outros; e que, num
determinado período, entre os anos 1830-1840, esse tráfico foi em larga medida
feito sob a proteção da bandeira portuguesa, que se obtinha no consulado
português no Rio de Janeiro, por meios ilícitos e fraudulentos. Sim, é verdade
que assim foi. Mas é igualmente verdade que o tráfico era feito com capital e
gente de várias origens, com têxteis ingleses, em navios segurados em
companhias de seguros europeias, etc. O tráfico nessa época envolvia pessoas e
meios de muitas proveniências.
Para que se fique com uma
ideia da complexidade e modernidade da atividade negreira no período em causa,
valerá talvez a pena transcrever uma pequena passagem do livro de David Eltis, Economic
Growth and the Ending of the Transatlantic Slave Trade: “No início de 1859,
vários marítimos espanhóis e portugueses viajaram de comboio, de Londres a
Hartlepool, um porto na costa nordeste inglesa, para aí receberem e tripularem
o Wilhemina, um recém-construído navio a vapor. Navegaram nele até Cádiz
e daí até à costa ocidental africana, onde adquiriram um carregamento de
escravos que, depois, desembarcaram em Cuba. Nos quatro anos seguintes, este e
outros vapores de construção inglesa fizeram várias viagens negreiras. Muitos
desses navios eram propriedade de uma sociedade por ações com sede em Cuba e acionistas
de várias nacionalidades. Tinha uma rede de agentes que ia de Nova Iorque a
Quelimane. Os escravos levados para Cuba eram vendidos a produtores de açúcar
que já utilizavam a mais sofisticada maquinaria de construção britânica, e o
açúcar que produziam era vendido para os países mais desenvolvidos”.
Ou seja, no século XIX o
tráfico transatlântico de escravos foi uma atividade multinacional, ligada a
uma economia global e que se servia de tudo o que havia de mais moderno no
mundo de então. Daí a enorme dificuldade em lhe pôr fim, o que ainda assim se conseguiu,
após décadas de esforços continuados de políticos, diplomatas e marinheiros
europeus e americanos. Portugal teve uma pequena quota parte desse esforço. Mas
foi um processo lento e complexo, e por isso o tráfico prosseguiu até à década
de 1850, para o Brasil, e até à de 1860, para Cuba, apesar de já ser, em ambos
os casos, ilegal.
Há dezenas de bons livros de
História, escritos por historiadores competentes, onde qualquer pessoa pode
aprofundar o seu conhecimento sobre esta matéria. Estranho, por isso, que
Fernanda Câncio continue a reproduzir o mesmo mal informado discurso, sem
alterações assinaláveis de abril de 2017 até agora. Fala em mitos e exige que
se conte a verdadeira história, mas não parece estar a par da verdade histórica
e não se dá conta de que ela própria perpetua mitos que invertem os mitos que
diz combater. É interessante ver que no quadro quantitativo do tráfico
transatlântico de escravos em que Fernanda Câncio se apoiou está bem explícito
que se trata de números de Portugal e do Brasil, como pode verificar-se neste link. Mas, no seu artigo no DN,
Câncio cortou a referência ao Brasil e Portugal ficou “sozinho” — como ela
própria diz — no pelourinho da opinião pública. Estou convencido de que o corte
da referência ao Brasil não foi intencional ou malicioso, com o propósito de
manipular o leitor. Julgo, isso sim, que Fernanda Câncio o terá feito devido a
uma mistura de desconhecimento dos factos e de preconceito ideológico.
E é sobretudo isso que estes
quinze meses de debate sobre a antiga escravatura nos têm mostrado à exaustão:
gente cheia de ideias apressadas, que mal conhece os factos de que fala e que tem
toneladas de preconceitos ideológicos. O diálogo com essas pessoas é difícil e
improdutivo, porque de um lado está o saber histórico e do outro a ideologia
política e os preceitos morais.
Se o fito de Fernanda Câncio
for esclarecer a opinião pública, então deve parar um pouco para se informar
melhor. Mas se a sua intenção for flagelar Portugal, torná-lo responsável por
muito do que de mau existiu na história, fazê-lo campeão das iniquidades, se o
seu propósito for culpabilizar os atuais portugueses, fazendo-os crer que os
seus antepassados eram invulgarmente nocivos e cruéis, então não precisa de se
informar, é só continuar na mesma senda.
Título e Texto: João Pedro Marques, Historiador e
romancista, Observador,
6-7-2018
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