Aparecido Raimundo de Souza
FAZ
UM MÊS QUE BRIGAMOS. Brigamos feio. Na velha cama, aqui em nosso quarto, ainda
repousam pedaços de nós. Estilhaços fragmentados do que restou. Sequelas que
não cicatrizaram. Feridas que não se fecharam. Sobre a banqueta da cômoda, a
calcinha branca, ladeada pelo sutiã que se esqueceu de levar. Também, pudera! Saiu às pressas, tropeçando
na raiva, estrugindo no furor que carregava dentro do coração. A raiva é um mal
incurável e mundano, uma enfermidade laica que destrói todas as possibilidades
que temos de tentar uma reconciliação.
Furiosa, exaltada e insânia, soltando
fogo pelas ventas, bateu a porta atrás de si. O som ruidoso tremeu os
alicerces. No canto, perto da janela, os sapatos com os quais chegou até aqui,
ficaram vazios de seus pés. No banheiro a nécessaire (entupida de objetos
mágicos e de uso diário) que a tornava mais bonita e atraente do que já era
única e soberba, irreal e autêntica aos meus encantos se quedou
desamparada. Pela casa toda, da cozinha
a copa, do corredor a sala, do hall a biblioteca, sinto quase a me tocar, a sua
presença constante me sufocando os olhos vazios de tanto chorar. O choro,
nessas horas, embora as lágrimas sejam um desabafo interior, mais deprimem que
aliviam.
Ela era tudo aqui. O complemento que
faltava. A luz que afastava a escuridão, o calor que aquecia nossos corpos, o
prazer maior que nos incendiava a libido descontrolada. Depois da sua partida,
vagando em seus ermos e desertos, sinto seu vazio em cada canto. Absolvo a sua
irradiação pulsante, o seu lenitivo, o seu espírito efluente em cada detalhe do
apartamento. Resumindo: tudo virou solidão. Uma prostração desapaziguada veio
lá de fora e se embruteceu dentro dos cômodos e repartições, principalmente
dentro de mim. De mansinho se achegou a melancolia e se genuflexou contritada à
minha dor.
Um sol pintalgado de cores mortas
aproveitou a ocasião e pelas frestas da janela se escondeu sorrateiro por
detrás dos móveis. As noites, desde então, se tornaram longas e frias, algentes
e marmóreas. A vida, ao redor, perdeu o viço, o brilho, a fagulha, a
cintilação, o tom, a quentura férvida e vulcânica que enchia os nossos momentos
da mais plena felicidade. Sem ela, sem o toque sutil que me levava até seu
coração, me fiz vazio e intervalado pela solitariedade de um devoluto pesado.
Em contrário ao antes, me pego denso e grosso, sombrio e carregado, empanzinado
e atrofiado pelos dissabores de um isolamento inexplicável.
Por essa razão, parado feito um idiota
em nosso quarto, vendo a calcinha branca e o sutiã na banqueta da cômoda, e
sabendo, no banheiro, a nécessaire, tenho vontade gritar. Berrar a pulmões
plenos. No canto, solitários iguais a mim, os sapatos. Em vão, de inopino,
tento capturar um pouco da sua existência, do seu perfil. As suas formas infantis e adultas, as suas
feições, os seus cheiros e odores, perfumes e fragrâncias, ainda me embevecem,
me alagam, me embebedam, me empapam todo o ser de um gostar intérmino, perenal,
incessante. Algo obscuro transformou a minha vida da água para o vinho.
A indiferença agora me olha, me espia,
me espreita me bisbilhota, me esquadrinha com uma dubiedade feroz, colossal e
atroz. O oco, de mãos dadas com o desabitado reinante, a cada segundo, se faz
maior, e mais indeterminado. No fundo, eu diria que se tornou grandioso e me
desviou literalmente do seu trajeto. A sua marcha, por essa razão, farfalha
como uma imagem inacessível dentro de meu ego mulambado frangalhado e
esfarrapado. Sou tudo isso, tudo isso eu sou e, ao mesmo tempo, nada sou. Nada
além de bagatelas. Restolhal de sobejos. Sem ela aqui eu vegeto inerteado num
porvir que me definha a andrajos arruinados.
Título e Texto: Aparecido
Raimundo de Souza, jornalista. De Campos dos Goytacazes, Estado do Rio de
Janeiro. 17-7-2018
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