terça-feira, 17 de julho de 2018

[Aparecido rasga o verbo] De quando minha vida tinha estrelinhas azuis e ela me coloria com fósmeos da mesma cor

Aparecido Raimundo de Souza

FAZ UM MÊS QUE BRIGAMOS. Brigamos feio. Na velha cama, aqui em nosso quarto, ainda repousam pedaços de nós. Estilhaços fragmentados do que restou. Sequelas que não cicatrizaram. Feridas que não se fecharam. Sobre a banqueta da cômoda, a calcinha branca, ladeada pelo sutiã que se esqueceu de levar.  Também, pudera! Saiu às pressas, tropeçando na raiva, estrugindo no furor que carregava dentro do coração. A raiva é um mal incurável e mundano, uma enfermidade laica que destrói todas as possibilidades que temos de tentar uma reconciliação. 

Furiosa, exaltada e insânia, soltando fogo pelas ventas, bateu a porta atrás de si. O som ruidoso tremeu os alicerces. No canto, perto da janela, os sapatos com os quais chegou até aqui, ficaram vazios de seus pés. No banheiro a nécessaire (entupida de objetos mágicos e de uso diário) que a tornava mais bonita e atraente do que já era única e soberba, irreal e autêntica aos meus encantos se quedou desamparada.  Pela casa toda, da cozinha a copa, do corredor a sala, do hall a biblioteca, sinto quase a me tocar, a sua presença constante me sufocando os olhos vazios de tanto chorar. O choro, nessas horas, embora as lágrimas sejam um desabafo interior, mais deprimem que aliviam.

Ela era tudo aqui. O complemento que faltava. A luz que afastava a escuridão, o calor que aquecia nossos corpos, o prazer maior que nos incendiava a libido descontrolada. Depois da sua partida, vagando em seus ermos e desertos, sinto seu vazio em cada canto. Absolvo a sua irradiação pulsante, o seu lenitivo, o seu espírito efluente em cada detalhe do apartamento. Resumindo: tudo virou solidão. Uma prostração desapaziguada veio lá de fora e se embruteceu dentro dos cômodos e repartições, principalmente dentro de mim. De mansinho se achegou a melancolia e se genuflexou contritada à minha dor.

Um sol pintalgado de cores mortas aproveitou a ocasião e pelas frestas da janela se escondeu sorrateiro por detrás dos móveis. As noites, desde então, se tornaram longas e frias, algentes e marmóreas. A vida, ao redor, perdeu o viço, o brilho, a fagulha, a cintilação, o tom, a quentura férvida e vulcânica que enchia os nossos momentos da mais plena felicidade. Sem ela, sem o toque sutil que me levava até seu coração, me fiz vazio e intervalado pela solitariedade de um devoluto pesado. Em contrário ao antes, me pego denso e grosso, sombrio e carregado, empanzinado e atrofiado pelos dissabores de um isolamento inexplicável.

Por essa razão, parado feito um idiota em nosso quarto, vendo a calcinha branca e o sutiã na banqueta da cômoda, e sabendo, no banheiro, a nécessaire, tenho vontade gritar. Berrar a pulmões plenos. No canto, solitários iguais a mim, os sapatos. Em vão, de inopino, tento capturar um pouco da sua existência, do seu perfil.  As suas formas infantis e adultas, as suas feições, os seus cheiros e odores, perfumes e fragrâncias, ainda me embevecem, me alagam, me embebedam, me empapam todo o ser de um gostar intérmino, perenal, incessante. Algo obscuro transformou a minha vida da água para o vinho.

A indiferença agora me olha, me espia, me espreita me bisbilhota, me esquadrinha com uma dubiedade feroz, colossal e atroz. O oco, de mãos dadas com o desabitado reinante, a cada segundo, se faz maior, e mais indeterminado. No fundo, eu diria que se tornou grandioso e me desviou literalmente do seu trajeto. A sua marcha, por essa razão, farfalha como uma imagem inacessível dentro de meu ego mulambado frangalhado e esfarrapado. Sou tudo isso, tudo isso eu sou e, ao mesmo tempo, nada sou. Nada além de bagatelas. Restolhal de sobejos. Sem ela aqui eu vegeto inerteado num porvir que me definha a andrajos arruinados.  
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, jornalista. De Campos dos Goytacazes, Estado do Rio de Janeiro. 17-7-2018

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