Alberto Gonçalves
Há sobretudo o aroma da doença que precede
o fim, e a terrível impressão de que ainda estamos no princípio. Portugal
tornou-se uma imensa exposição de fancaria que as vozes dos donos vendem aos
berros
Um deputado do antigo PSD,
Carlos Abreu Amorim, comparou os incêndios gregos aos portugueses e despertou a
cólera das boas consciências. As boas consciências irromperam a rejeitar a
utilização de uma desgraça para fins políticos. Uma obscuridade do PS
classificou o comentário de “vergonhoso e indigno” (ao invés dos comentários
vergonhosos e dignos). Uma moça do BE falou em “demagogia barata” (a do Bloco
sai caríssima). E a sensível filha de Adriano Moreira afirmou que “não se pode
descer mais baixo”. Ou pode?
Claro que sim. Trinta e cinco
segundos após as patrulhas definirem os limites da linguagem e proibirem o
aproveitamento da tragédia de lá para caluniar o governo daqui, passou-se à
fase posterior. A fase posterior consistiu no aproveitamento da tragédia de lá
para desresponsabilizar o governo daqui, exercício que, ao invés de fúria,
suscita regozijo geral. Na ânsia de agradar aos chefes, numerosos serviçais da
oligarquia desataram a explicar às massas porque é que os governos
(socialistas, escusado acrescentar) não devem ser criticados quando as coisas
ardem. Em prosa pungente, o novo diretor de um defunto diário evocou o calor,
os ventos, as árvores, a humidade, as mudanças climáticas, a densidade urbana,
o turismo, o sr. Trump e a pesca da solha para concluir, acho eu, que nenhum
governante (salvo os de “direita”, suspeito) tem culpa dos incêndios.
Alguém disse o contrário?
Entre gente civilizada, julgo que não. E os serviçais da oligarquia, as vozes
dos donos, sabem. Não sendo demasiado iluminados, sabem o suficiente para saber
que o problema não passa exatamente pelos incêndios, mas pelas vítimas que
estes causaram. Sabem que a recente devastação na Suécia, provocada pelo
“aquecimento global”, pelo Abominável Homem das Neves e pelo que se lembrarem,
até ver não matou uma única pessoa. Sabem que os massacres portugueses e gregos
de 2017 (em dose dupla) e de 2018 são dos fogos florestais mais mortíferos dos
últimos 70 ou 80 anos, no Ocidente e não só. Sabem que os dois (ou três)
exemplos constituem casos singulares de ineficácia do Estado no cumprimento da
solitária missão que de facto lhe cabe. Sabem que pior do que apanhar o
sacrossanto Estado em flagrante delito é, logo em seguida, apanhar as suas
figuras gradas numa impecável exibição de mentiras, desorientação, sentimentalismo,
desprezo, cinismo e crueldade. Sabem que, no auge da calamidade, um
primeiro-ministro de férias em Espanha entra no território do grotesco. Sabem
que a nossa gloriosa nação está nas mãos de criaturas cuja competência não as
prepara para sequer gerir um galinheiro, e cujo carácter aconselha a que não
sejam deixadas a sós com as galinhas.
As vozes dos donos sabem. E
sabem que a vassalagem que prestam as torna menos recomendáveis do que os
respectivos amos, e menos habilitadas a emitir palpites acerca das vítimas que
manipulam a troco de uns trocos. E sabem que nós sabemos que as vítimas não
importam e nunca importaram, exceto na medida – aborrecida, concedo – em que
obrigam a controlar eventuais danos na popularidade. Apesar de beatas e
repulsivas, as vozes dos donos sabem. E não querem saber: a fim de defender a nomenklatura, são capazes de tudo.
Na verdade, porém, não
precisavam de quase nada. Os esforços de propaganda das televisões em peso e da
vasta maioria da imprensa (?) padecem de excesso de zelo e redundância. O país
já se rendeu aos que nele mandam, sem condições e sem necessidade de sujeitar
as vozes dos donos a semelhantes trabalhos. Quando o dr. Costa passeou o calção
a mil quilómetros dos cadáveres de Pedrógão e não houve alcatrão e penas para o
acolher no regresso, percebeu-se que desistimos em definitivo de nos
assemelharmos a uma sociedade moderadamente higiénica e suportável. De então
para cá, a pocilga fatalmente refinou-se, tal como a jovial resignação dos seus
habitantes aos enxovalhos que lhes atiram para cima.
Hoje, a nomenklatura poderia cantar a “Casinha” no velório de falecidos à
conta dos cortes hospitalares – e não sofreria qualquer remoque. Há amigos da
saúde pública que se tratam na privada, e inimigos da especulação imobiliária
que especulam com fervor. Há desastres sucessivos nas finanças e saques
imparáveis no fisco. Há palco aberto aos fascistas das “causas”, crescentemente
fanáticas e amalucadas. Há corrupção impune, pulhice recompensada, populismo em
rédea solta. E isto sem consequências, sem escrutínio, sem dissensão, sem
vergonha, sem esperança, sem remorso. Há, principalmente, o aroma da doença que
precede o fim, e a terrível impressão de que ainda estamos no princípio.
Portugal tornou-se uma imensa exposição de fancaria, que as vozes dos donos
vendem aos berros.
Título e Texto: Alberto Gonçalves, Observador, 29-7-2018
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