José Manuel Fernandes
O episódio Robles, tal como outros
envolvendo celebridades da esquerda chique (Iglesias, Varoufaquis), só é
compreensível indo às raízes do pensamento radical, ao porquê da sua arrogância
sem vergonha
Porque será que não fiquei
surpreendido nem com os negócios imobiliários de Ricardo Robles, nem com as reações histriónicas das suas companheiras de partido, que começaram a
disparar contra tudo e contra todos enovelando-se em artifícios e mentirinhas?
Não, não foi por acreditar nas
suas desculpas esfarrapadas e cheias de contradições que não deixarão de o perseguir nos próximos tempos.
Não fiquei surpreendido por
uma razão bem mais simples: porque é da natureza do Bloco e da ideologia que
alimenta o Bloco ser assim e atuar assim. É da natureza do Bloco porque
está-lhe na massa do sangue ver-se a si mesmo como estando acima dos demais,
como sendo a moral do regime. E é da natureza da sua ideologia porque ela vê-se
como moralmente superior às demais.
Reparem na reação de Catarina Martins. As críticas a Ricardo Robles não eram políticas
– eram interesseiras, pois apenas visavam defender os interesses das
imobiliárias que o Bloco em bloco, e Robles em particular, tão corajosamente
têm atacado. E as notícias dos jornais não eram inocentes, muito menos fruto de
os jornalistas tratarem de cumprir a sua missão de fiscalização dos titulares
de cargos públicas, antes maquinações venais, peças encomendadas e conspirações
mal disfarçadas.
Há aqui algum descontrolo
emocional que até nos diverte já que, ao menos uma vez na vida, foram os
bloquistas a serem apanhados em evidente contrapé, tão fora de mão que nem
conseguiram beneficiar da habitual benevolência camaradas de muitas redacções.
Contudo esse descontrolo emocional apenas tornou mais evidente a forma de
raciocinar do Bloco e dos seus dirigentes.
Primeiro que tudo, Catarina
Martins, tal como Ricardo Robles, consideram-se políticos moralmente superiores
aos demais. Não há aqui nada de novo, pelo contrário: eles apenas estão na
linha da tradição dos radicais de esquerda, dos jacobinos aos comunistas, eles
apenas seguem a cartilha de quem, sem tibiezas nem disfarces, assumiu essa
condição de estarem acima dos demais: nada menos que o próprio Álvaro Cunhal.
Sim, porque foi ele quem escreveu, significativamente em 1974, o ano da
revolução, um pequeno opúsculo intitulado A superioridade moral dos comunistas, um texto
que é muito útil revisitar pela sua clareza e um desassombro no limite da
arrogância.
Para Cunhal, “os comunistas
não se distinguem apenas pelos seus elevados objetivos e pela sua ação
revolucionária, distinguem-se também pelos seus elevados princípios morais”.
Perguntar-se-á: porque são homens melhor do que os outros? Não, como Cunhal tem
o cuidado de explicar. Eles são superiores porque “a moral dos comunistas é
contrária e superior à moral burguesa”. Eles até podem ter fraquezas, mas estão
do lado certo da história, e é isso e só isso que conta para os comunistas e
seus aparentados (como são os bloquistas). A superioridade da sua moral deriva
de serem, por definição, agentes do bem e mensageiros de um futuro radioso
pois, como explicava o dirigente histórico do PCP, essa moral identifica-se com
a “natureza, objetivos e missão histórica do proletariado”. O conceito chave
aqui é “missão histórica”: é ele que autoriza tudo e justifica tudo.
A argumentação deste livrinho
surge-nos numa língua de pau a que já não estamos habituados, mas a sua lógica
mantem-se intacta: os radicais de hoje, como os radicais de ontem, veem-se como
moralmente superiores porque acham que lutam por uma sociedade sem classes,
porque defendem que “a propriedade é um roubo” (no sábado os bloquistas que
foram ao acampamento de juventude tinham um painel dedicado a esse tema, mas
suponho que o nosso Robles é capaz de não ter assistido) e entendem que só há
uma sociedade decente, que é aquela onde tudo é de todos e nada é de ninguém (o
que sempre acabou com o partido e o Estado a serem donos de tudo, mas isso são
detalhes).
O paradoxo desta moral é que
ela pressupõe que os radicais sejam desprendidos dos bens materiais, e eles
acham mesmo que são. Ou, para ser mais exato, acham que serão no dia em que se
realizar a sua utopia. Até lá fazem o que Lenine lhes ensinou: usam tudo o que
as nossas sociedades colocam ao seu dispor para atingirem os seus objetivos.
Fazem-no na ação política, mas não lhes repugna fazê-lo também nas suas vidas
pessoais. Isso não lhes causa qualquer problema de consciência – não causou a
Ricardo Robles, como não causa a Varoufakis (no seu apartamento com vista para
a Acrópole), como não causa a Pablo Iglesias (feliz na sua vivenda de 650 mil
euros), como não causa a todos os políticos do PT brasileiro que “fizeram como
os outros” e enriqueceram.
Por isso, repito, nada disto
nos devia surpreender. É uma tradição antiga, com raízes na Revolução Francesa
e nos jacobinos de 1793, de quem, como escreveu François Furet, o grande
historiador desse período, “se esperava que abrissem o caminho à burguesia, mas
que nos deram o primeiro exemplo de burgueses que detestam os burgueses em nome
de princípios burgueses”. Foi apenas o primeiro exemplo, pois muitos outros se
seguiram, como recordou e elencou no seu magistral estudo O Passado de uma Ilusão – Ensaio Sobre a Ideia Comunista no Século XX.
Será possível encontrar melhor
encarnação dessa imagem de um burguês que detesta os burgueses do que Ricardo
Robles? É difícil, porque na verdade o vereador bloquista se atreveu a ir longe demais no exercício da hipocrisia. Mas, de novo, temos de
reconhecer que as evidentes contradições entre o que diz e o que faz possuem
antecedentes famosos e, sobretudo, reveladores da doença congénita do
radicalismo moralista.
Regresso à Revolução Francesa
pois volta a ser nela, e na forma trágica como evoluiu de uma libertação para
uma opressão, e desta para o Terror, que encontramos alguns dos males que hoje
detectamos no radicalismo “moralmente superior”. Edmund Burke, porventura o
mais lúcido crítico dos excessos franceses, não pode por exemplo deixar de
notar, na crítica que fez a um dos filósofos que inspirou os radicalismos
revolucionários, Jean-Jacques Rousseau, que se tratava de alguém que, ao mesmo
tempo que se proclamava ao serviço da Humanidade não tivera sequer a humanidade
suficiente para não entregar os seus seis filhos a um orfanato, tendo uma
conduta pessoal deplorável. “A lover of his kind, but a hater of his kindred”,
escreveu de forma ácida, mas certeira, interrogando-se sobre se os homens
deveriam ser julgados pelos seus comportamentos reais ou pelas suas grandiosas,
e “generosas”, proclamações. Ou seja, identificou um mal que ainda hoje
detectamos nos muitos “filhos de Rousseau” que por aí andam – pois é isso que
são, mesmo que gostem mais de se ver como “filhos de Marx”.
Na nossa esquerda chique,
muito bem representada nas fileiras do Bloco, esta condição é especialmente
evidente. O amor que proclamam pela causa dos pobres, ou dos idosos, ou dos
doentes do SNS, é sempre um amor tão absoluto e radical que só pode ser um amor
“abstrato”.
É um amor que por isso mesmo
nunca ou quase nunca se traduz em ações desinteressadas de voluntariado, em
gestos simples de solidariedade como darem apoio a doentes em cuidados
paliativos ou andarem pela cidade a distribuir comida aos sem abrigo. Isso
seria corromper o seu amor absoluto porque isso seria “caridadezinha” – para
além de que iriam misturar-se com as organizações cristãs de solidariedade
social, que abominam.
A nossa esquerda chique está
cheia deste tipo de figuras – a que Burke também chamou “filósofos da vaidade”
–, mas imagino que nesta fase do meu texto muitos pensem que exagero.
Afinal nem todos são como
Ricardo Robles, nem todos fizeram, ou tentaram fazer, os negócios em que este
se meteu, o que é uma evidência. Afinal os que no Bloco são mais ortodoxos
(como Luís Fazenda, o único dirigente bloquista a distanciar-se do vereador lisboeta)
sabem que à “superioridade moral dos comunistas” deve corresponder também um
mínimo de esforço para seguir a chamada “moral comunista”, e que Robles está a
milhas dessa preocupação terrena.
Mas eu, que conheci por dentro estas organizações (por lá andei entre os 15 e os 23
anos, depois curei-me), que li os livros que os inspiraram e inspiram e participei
em muitos convívios (na época não lhes chamávamos pomposamente “workshops”) de
formação de militantes, identifico nas Catarinas, nas Mortáguas e nos Robles o
mesmo sentimento de “superioridade moral” que sempre se respirou nesses meios e
que Álvaro Cunhal tão orgulhosamente reivindicou. A diferença é que hoje já se
abandonaram palavras como “proletariado” e “luta de classes”, trocando-as por
temas mais “urbanos” e preferindo os corredores das universidades às cantinas
das fábricas para difundirem a sua doutrina (nisso são muito mais gramscianos
do que leninistas). A diferença é que a esquerda chique é mesmo só ideologia e
complexo de culpa (pela sua condição burguesa), o que a torna ainda muito mais
amoral.
Se não fosse este o ar que o
Bloco respira não se tinham unido todos e todas da forma como uniram na defesa
do indefensável.
Título e Texto: José Manuel Fernandes, Observador,
30-7-2018
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