Aparecido Raimundo de Souza
MINHAS MÃOS AMANHECIDAS VIERAM lavar meu rosto de saudades. Nesse
instante, o destino ingrato parece ter dado uma pausa no tempo. Uma estancada
de um minuto, onde tudo, de repente, parece estar na mais profunda calma e
mansidão. Mas qual o quê! Ledo engano! Tudo em derredor de mim, não está, ou
não vai além de uma impressão, de uma visão passageira deturpada.
Na verdade, minha alma se acha poluída, congestionada, empretecida de
muita sujeira. Esterco. Fruto de um bocado de poeira grossa. Fuligem deixada
pela sórdida tristeza que habita em mim não é de hoje. Igualmente da
infelicidade agonizante, definhante e escarnia que não se divorcia e não sei
explicar por qual motivo não desgruda. Percebo não restar saída, pelo menos
nesse momento crucial, senão chorar.
Cair como uma criança sem o aconchego materno, num pranto dorido, como um
bebê no berçário da maternidade que se perdeu dos pais em meio de uma grande
multidão de estranhos. Derramar em forma de lagrimas, meus ais, medos e
receios, para extravasar os momentos cruciantes que me tolhem a vontade de
respirar, de continuar vivendo, de ser um pouco só feliz. Feliz e realizado.
O meu coração está preso a correntes fortes, como também minha alma não
consegue se movimentar nem para um lado nem para outro. Chorar. Somente a
procissão dessas gotas caminhantes, rosto abaixo (nesse momento amargo),
conseguirá me libertar das amarras fortes que me prendem e trazer um pouco de
alívio e de sossego, um bocadinho da paz sonhadora e almejada que eu realmente
quero e mereço.
Contudo, apesar dos pesares, embora continue com o coração despedaçado,
consigo deslumbrar uma tênue luz se acendendo no fim do túnel. Sinto igualmente
que lá do mais alto céu caem ternuras e bênçãos, e à medida que despencam,
começam a escorrer, paralelo ao furacão desenfreado que flui do recôndito de
minhas entranhas. Um pequeno alívio se
faz presente.
Nessa confusão toda eu apenas sou um pedaço perdido de mim dentro de
tudo. Resíduos de um amor fracassado, de uma senda interrompida, de um amanhã
que não vingou. E se germinou, não chegou a progredir como deveria, ou como eu
gostaria. Talvez, em vista disso, eu continue a me sentir uma coisa fútil,
banal e sem razão.
Na verdade, me vejo como restos desfalecidos de um corpo inerte e sem
vida. Grosso modo, me assemelho a destroços de uma existência inteira jogada à
mercê de fortes temporais. Rajadas e ventos vindos com a intenção única de
destruir e devastar. Olho para o perenal distante e procuro alguma brecha, uma
lacuna que seja, onde possa enfiar minhas tristezas e dissabores e conversar um
pouco com Deus.
“Ó Eterno – balbucio de mim para com meus botões – Tenho nesse dado
momento à impressão de antever seus olhos me observando. Daqui eu grito as mãos
em prece. Venha em meu socorro! Sem sua presença em minha vida o que será de
mim? Não sei de nada. Nem mesmo o que me espera, se é que alguma coisa me
aguarda. Por agora, vislumbro diante de meu infortúnio, um futuro negro, um
amanhã de carreira incerta”.
Percebo que as estradas percorridas até esse momento da minha vida me
fecharam todas as passagens. Afirmo que a única ponte que poderia me devolver à
felicidade plena ficou tão longínqua, tão sem definição na minha mente, que mal
consigo enxergar a trilha de regresso a ela.
De repente, uma metamorfose. Uau! Aquela luz, a luz no fim do túnel,
embora ofuscada por densas camadas de nuvens espessas, se agiganta. Traz um
pouco de alívio e esperança. De alento e de certeza. Afinal de contas, minhas
mãos amanhecidas continuam aqui, lavando meu rosto entristecido de saudades.
Por agora, queria retirar de perto das minhas angústias, a malquerença que me
empata e me atravanca continuar em frente.
Queria voltar a ver de novo o sol radiante com brilho de esperança.
Arrancar, extirpar, de uma vez por todas o meu olhar perdido. Queria mais:
afastar a visão deformada das coisas que me cercam. Fico imaginando, como seria
gratificante espantar para longe os fragmentos de quimeras mal sonhadas,
reabraçar a conciliação, a imperturbabilidade que encontrei muito tempo atrás,
reviver aquela ventura que ficou leve, destravada, flexível, meiga, porém,
enfurnada numa terra de esquecimento.
Sei que tudo o que restou de mim está aqui. Do que fui, também está aqui.
Do que construí está igualmente aqui. Do que terminou, do que sou agora, tudo,
tudo, tudo está aqui. Mas espere! Acho
que atinei com a descoberta de algo importante. Todavia, fatal, letal. Mortal.
Meu tempo acabou...
É por isso que cansei de palmilhar por vias de agonia, buscando em cada
cidade por onde passei, um coração solitário como o meu. Um peito amigo que me
desse pousada e guarida. Queria encontrar um ombro amigo. Um colo que me
estendesse o calor de acreditar estar vivo e me concedesse amor, carinho,
sobretudo, sobretudo que me reconstruísse...
Entendo que meu tempo acabou. A prova viva disso que falo, aqui está.
Minhas mãos amanhecidas vieram lavar meu rosto de saudades. De onde estou
agora, onde me encontro atarantado e fora do chão, daria tudo de mim para
voltar a bolinar no fiozinho tênue do destino.
Ofertaria os dias que ainda me restam para viver e sobreviver a essa
jornada longa, cansativa e depauperada que me atropela as horas, notadamente
aqueles segundos fatais que me foram levados pelos momentos tortuosos e infames
da solidão.
“Mais mau” me pego vencido. Tenho que retirar do rosto, preciso arrancar
do meu rosto, essas mãos amanhecidas. Esconder no caderno do passado a vida
desfeita em cinzas. Fazer rebrilhar de
novo o vivo olhar, a perfeita ilusão de um porvir de ventura e de esperanças.
Tenho que progredir.
Topar com alguma coisa nova que garanta minha permanência nessa quadra do
agora cansado de sofrer junto comigo as intempéries e as precauções de um
póstero desfeito, soterrado, desmoronado...
Tenho urgentemente que regressar ao viver. Meu tempo acabou. Acabou?!
Não. Meu tempo não acabou. Necessito voltar a sorrir, a cantar, a amar, a ser
feliz e alegre. Apesar desse quadro lúgubre e desolador, apesar do tempo ter se
escasseado, apesar dessa tristeza mesquinha, ainda carrego, ainda acumulo em
mim a energia da convicção, a vitalidade da certeza de estar construindo algo
sólido e maciço.
Algo realmente inquebrável e talvez até imutável. Cansei desse olhar
malgrado e não aderente ao brilho das boas coisas da vida. Cansei me fartei
dessa apática solidão que teima em me perseguir. Meu tempo não acabou. Estou
vivo e como tal, posso ainda sonhar com coisas lindas. Construir não castelos
de areia, mas moradas seguras, com anjos encantados ao redor de meu novo eu.
Não quero um mundo de ilusões deformado pelas torpezas que agora me
esmagam. Nada disso me fará feliz. Idealizo com um amanhã menos cruel e
opressivo. Ambiciono com dias de ventos soprando amenos. Fantasio com a
liberdade de ser eu mesmo. Sem ninguém para tolher os passos a serem seguidos.
Congemino...
Pluralizo com coisas palpáveis, coisas ainda que difíceis para conseguir,
mas embeveço. Sei meu tempo não acabou e a partir de agora alcançarei tudo o
que almejei, e, se necessário for, aplicarei uma boa dose, uma porção cavalar
de perseverança e amor em minha alma.
Beberei um cálice de vontade férrea para enfrentar as lutas e as pelejas
que surgirem.
Quero me esquecer no tempo. Fluir como as águas cristalinas que correm
pelo leito desse rio imenso que desemboca, tenho plena convicção, num oceano de
ondas prósperas. O mar, para mim, significa transpor o túnel que tenho ali,
aqui, a poucos passos à frente e chegar do outro lado.
Minhas mãos amanhecidas vieram lavar meu rosto de saudades. Haverei de
agora em diante, plantar, no útero da vida a semente de um novo ser vivente. Um
ser que desabrochará para o mundo. Como os girassóis que se abrem para o lado
do astro rei. Nesse exato momento estou retirando da frente de meu rosto essas
mãos amanhecidas.
Por derradeiro, afastando, com elas, todas essas coisas aborrecíveis do
meu passado tristonho e melancólico. Coisas pútridas que residiam e se
entrelaçavam dentro de mim. Coisas que a partir de agora, deverão ficar, para
sempre, sepultadas deste lado de cá do túnel. Minhas mãos amanhecidas vieram
lavar meu rosto de saudade.
Nesse dado momento parece que o destino ingrato deu uma pausa no tempo.
Nada melhor que aproveitar essa retenção. Bem sei, poderá não existir outra
oportunidade. Minhas mãos amanhecidas vieram lavar... E lavaram, limparam,
expurgaram, dissiparam de uma vez para sempre meu rosto de saudades...
Título e Texto: Aparecido
Raimundo de Souza, de São
Paulo, Capital. 27-9-2019
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