sexta-feira, 27 de setembro de 2019

[Aparecido rasga o verbo] Coisas...

Aparecido Raimundo de Souza

MINHAS MÃOS AMANHECIDAS VIERAM lavar meu rosto de saudades. Nesse instante, o destino ingrato parece ter dado uma pausa no tempo. Uma estancada de um minuto, onde tudo, de repente, parece estar na mais profunda calma e mansidão. Mas qual o quê! Ledo engano! Tudo em derredor de mim, não está, ou não vai além de uma impressão, de uma visão passageira deturpada.

Na verdade, minha alma se acha poluída, congestionada, empretecida de muita sujeira. Esterco. Fruto de um bocado de poeira grossa. Fuligem deixada pela sórdida tristeza que habita em mim não é de hoje. Igualmente da infelicidade agonizante, definhante e escarnia que não se divorcia e não sei explicar por qual motivo não desgruda. Percebo não restar saída, pelo menos nesse momento crucial, senão chorar.

Cair como uma criança sem o aconchego materno, num pranto dorido, como um bebê no berçário da maternidade que se perdeu dos pais em meio de uma grande multidão de estranhos. Derramar em forma de lagrimas, meus ais, medos e receios, para extravasar os momentos cruciantes que me tolhem a vontade de respirar, de continuar vivendo, de ser um pouco só feliz. Feliz e realizado.

O meu coração está preso a correntes fortes, como também minha alma não consegue se movimentar nem para um lado nem para outro. Chorar. Somente a procissão dessas gotas caminhantes, rosto abaixo (nesse momento amargo), conseguirá me libertar das amarras fortes que me prendem e trazer um pouco de alívio e de sossego, um bocadinho da paz sonhadora e almejada que eu realmente quero e mereço.

Contudo, apesar dos pesares, embora continue com o coração despedaçado, consigo deslumbrar uma tênue luz se acendendo no fim do túnel. Sinto igualmente que lá do mais alto céu caem ternuras e bênçãos, e à medida que despencam, começam a escorrer, paralelo ao furacão desenfreado que flui do recôndito de minhas entranhas.   Um pequeno alívio se faz presente.

Nessa confusão toda eu apenas sou um pedaço perdido de mim dentro de tudo. Resíduos de um amor fracassado, de uma senda interrompida, de um amanhã que não vingou. E se germinou, não chegou a progredir como deveria, ou como eu gostaria. Talvez, em vista disso, eu continue a me sentir uma coisa fútil, banal e sem razão.

Na verdade, me vejo como restos desfalecidos de um corpo inerte e sem vida. Grosso modo, me assemelho a destroços de uma existência inteira jogada à mercê de fortes temporais. Rajadas e ventos vindos com a intenção única de destruir e devastar. Olho para o perenal distante e procuro alguma brecha, uma lacuna que seja, onde possa enfiar minhas tristezas e dissabores e conversar um pouco com Deus.

“Ó Eterno – balbucio de mim para com meus botões – Tenho nesse dado momento à impressão de antever seus olhos me observando. Daqui eu grito as mãos em prece. Venha em meu socorro! Sem sua presença em minha vida o que será de mim? Não sei de nada. Nem mesmo o que me espera, se é que alguma coisa me aguarda. Por agora, vislumbro diante de meu infortúnio, um futuro negro, um amanhã de carreira incerta”.

Percebo que as estradas percorridas até esse momento da minha vida me fecharam todas as passagens. Afirmo que a única ponte que poderia me devolver à felicidade plena ficou tão longínqua, tão sem definição na minha mente, que mal consigo enxergar a trilha de regresso a ela.

De repente, uma metamorfose. Uau! Aquela luz, a luz no fim do túnel, embora ofuscada por densas camadas de nuvens espessas, se agiganta. Traz um pouco de alívio e esperança. De alento e de certeza. Afinal de contas, minhas mãos amanhecidas continuam aqui, lavando meu rosto entristecido de saudades. Por agora, queria retirar de perto das minhas angústias, a malquerença que me empata e me atravanca continuar em frente.

Queria voltar a ver de novo o sol radiante com brilho de esperança. Arrancar, extirpar, de uma vez por todas o meu olhar perdido. Queria mais: afastar a visão deformada das coisas que me cercam. Fico imaginando, como seria gratificante espantar para longe os fragmentos de quimeras mal sonhadas, reabraçar a conciliação, a imperturbabilidade que encontrei muito tempo atrás, reviver aquela ventura que ficou leve, destravada, flexível, meiga, porém, enfurnada numa terra de esquecimento.

Sei que tudo o que restou de mim está aqui. Do que fui, também está aqui. Do que construí está igualmente aqui. Do que terminou, do que sou agora, tudo, tudo, tudo está aqui.  Mas espere! Acho que atinei com a descoberta de algo importante. Todavia, fatal, letal. Mortal. Meu tempo acabou...

É por isso que cansei de palmilhar por vias de agonia, buscando em cada cidade por onde passei, um coração solitário como o meu. Um peito amigo que me desse pousada e guarida. Queria encontrar um ombro amigo. Um colo que me estendesse o calor de acreditar estar vivo e me concedesse amor, carinho, sobretudo, sobretudo que me reconstruísse...

Entendo que meu tempo acabou. A prova viva disso que falo, aqui está. Minhas mãos amanhecidas vieram lavar meu rosto de saudades. De onde estou agora, onde me encontro atarantado e fora do chão, daria tudo de mim para voltar a bolinar no fiozinho tênue do destino.

Ofertaria os dias que ainda me restam para viver e sobreviver a essa jornada longa, cansativa e depauperada que me atropela as horas, notadamente aqueles segundos fatais que me foram levados pelos momentos tortuosos e infames da solidão.

“Mais mau” me pego vencido. Tenho que retirar do rosto, preciso arrancar do meu rosto, essas mãos amanhecidas. Esconder no caderno do passado a vida desfeita em cinzas.  Fazer rebrilhar de novo o vivo olhar, a perfeita ilusão de um porvir de ventura e de esperanças. Tenho que progredir.

Topar com alguma coisa nova que garanta minha permanência nessa quadra do agora cansado de sofrer junto comigo as intempéries e as precauções de um póstero desfeito, soterrado, desmoronado...

Tenho urgentemente que regressar ao viver. Meu tempo acabou. Acabou?! Não. Meu tempo não acabou. Necessito voltar a sorrir, a cantar, a amar, a ser feliz e alegre. Apesar desse quadro lúgubre e desolador, apesar do tempo ter se escasseado, apesar dessa tristeza mesquinha, ainda carrego, ainda acumulo em mim a energia da convicção, a vitalidade da certeza de estar construindo algo sólido e maciço.

Algo realmente inquebrável e talvez até imutável. Cansei desse olhar malgrado e não aderente ao brilho das boas coisas da vida. Cansei me fartei dessa apática solidão que teima em me perseguir. Meu tempo não acabou. Estou vivo e como tal, posso ainda sonhar com coisas lindas. Construir não castelos de areia, mas moradas seguras, com anjos encantados ao redor de meu novo eu.

Não quero um mundo de ilusões deformado pelas torpezas que agora me esmagam. Nada disso me fará feliz. Idealizo com um amanhã menos cruel e opressivo. Ambiciono com dias de ventos soprando amenos. Fantasio com a liberdade de ser eu mesmo. Sem ninguém para tolher os passos a serem seguidos. Congemino...

Pluralizo com coisas palpáveis, coisas ainda que difíceis para conseguir, mas embeveço. Sei meu tempo não acabou e a partir de agora alcançarei tudo o que almejei, e, se necessário for, aplicarei uma boa dose, uma porção cavalar de perseverança e amor em minha alma.  Beberei um cálice de vontade férrea para enfrentar as lutas e as pelejas que surgirem.

Quero me esquecer no tempo. Fluir como as águas cristalinas que correm pelo leito desse rio imenso que desemboca, tenho plena convicção, num oceano de ondas prósperas. O mar, para mim, significa transpor o túnel que tenho ali, aqui, a poucos passos à frente e chegar do outro lado.

Minhas mãos amanhecidas vieram lavar meu rosto de saudades. Haverei de agora em diante, plantar, no útero da vida a semente de um novo ser vivente. Um ser que desabrochará para o mundo. Como os girassóis que se abrem para o lado do astro rei. Nesse exato momento estou retirando da frente de meu rosto essas mãos amanhecidas.

Por derradeiro, afastando, com elas, todas essas coisas aborrecíveis do meu passado tristonho e melancólico. Coisas pútridas que residiam e se entrelaçavam dentro de mim. Coisas que a partir de agora, deverão ficar, para sempre, sepultadas deste lado de cá do túnel. Minhas mãos amanhecidas vieram lavar meu rosto de saudade.

Nesse dado momento parece que o destino ingrato deu uma pausa no tempo. Nada melhor que aproveitar essa retenção. Bem sei, poderá não existir outra oportunidade. Minhas mãos amanhecidas vieram lavar... E lavaram, limparam, expurgaram, dissiparam de uma vez para sempre meu rosto de saudades...
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de São Paulo, Capital. 27-9-2019

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