Carina Bratt
Eddie, agora só pensava na
Mulher Cadeira e nada o demovia dessa ideia. A família apostara que logo ele se
esqueceria dessa nova garota como das demais que passaram pela sua vida. De uma
bem recente ainda restavam marcas profundas e indeléveis. A Mulher Samambaia.
Isso mesmo. Eddie estivera quase às raias da neurastenia por ela, barbaramente
apaixonado, cego, sem chão, a ponto de fazer algumas besteiras. Aliás, fez.
Quase acabou preso. Por fim,
se desencantou da Lageana Santa Catarinense, quando soube pelos amigos e
confirmou mais tarde, ao ler em revistas especializadas em celebridades, que
ela engravidara do jogador Dentinho, na época, meio-campista e ponta direita do
Corinthians. Dentinho havia chegado primeiro, na frente dele, dera uma dentada
nela, uma mordida feroz no lugar errado e nove meses depois veio ao mundo o
Bruno Lucas.

Eddie passou, deu uma olhada
básica pelo envidraçado, voltou, tornou a encarar. Na terceira cruzada, deu uma
de Chico Buarque: “nos teus olhos também posso ver, as vitrines te vendo
passar”. Entrou porta adentro, tropeçou no segurança. Ambos foram ao chão num
abraço de nomenclatura esquisita, embolados como dois bonecos de marionetes
fugidos, às pressas, dos cordéis imaginários que os prendiam. Eddie pediu mil desculpas e chegou com tudo
para uma sondada mais de perto no terreno.
Juraria a dedinhos cruzados,
que a garota lhe endereçara um sorriso meio tímido, todavia, forte o bastante
para ele cair matando e investir no mais novo pedaço de mau caminho. Assim fez.
Como quem não quer nada se achegou. Com fingido interesse por um determinado
aparelho, começou a fazer perguntas e mais perguntas. Havia uma enorme
quantidade de celulares nas mais variadas cores espalhados numa peça de
mostruário trancada a cadeado.
- Esse aqui o senhor tem
acesso a Internet, ao Google, ao Youtube e ao Facebook...
- Conseguirei ver meus recados
no WhatsApp?
- Não só verá como o senhor
igualmente em tempo real poderá responder a seus e-mails e, claro, interagir
com os seus pais, amigos, com a namorada...
- E este?
- Sofisticadíssimo! Além de
tudo o que acabei de enumerar essa preciosidade vem com televisão, geladeira,
rádio AM e FM. De lambuja, MP4, MP5, MP6, MP8 e MP10. Fala três idiomas, traduz textos, evita que o
senhor receba notícias ruins... Gostou do brinquedinho?
- Por favor, nada de senhor...
- Hábito.
- Eu compreendo, mas, por
gentileza...
- Não me disse seu nome?
- Aryane.
- Como a Stein Kopf, a
Panicat?
- Quem dera! Minha beleza
passou longe daquela musa.
- De forma alguma.
Particularmente acho você mais bonita. Sem mencionar a elegância e o porte de
princesa. Perdão, de rainha...
Ela, matreira, sorriso de um
canto a outro do rosto:
- Me sinto lisonjeada. Só não
imagine aí na sua cabecinha que me preocupo com os biquinhos de meus seios.
- Por quê, a Aryane da
televisão tem problemas com essa parte do corpo?
- Sim.
- Desconhecia esse
particular...
- Pois é. “Nem tudo é o que
parece ser”. Minha xará tem esse pequeno contratempo com seus mamilos.
- Volto a repetir: você é mais
atraente que ela.
- O senhor, digo, você está
sendo bondoso.
- Não, sincero.
- De verdade?
- Acredite! Mata uma
curiosidade?
- Até duas.
- A que horas sai?
- Às dez quando o relógio
mostrar dois patinhos no mostrador.
- Me daria o prazer de poder
vir lhe buscar?
- Com certeza. O prazer será
todo meu.
- Aqui estarei plantado feito
dois de paus à sua espera.
- E eu encantada com a sua
chegada. Aproveitarei a oportunidade para deitar o cabelo e capar o gato. Mas
por favor, por tudo quanto é mais sagrado. Não volte a atropelar o segurança.
Ele sofre de hemorroidas.
Ambos sorriram com vontade a
lembrança desse fato deveres ridículo e engraçado. A partir desse bate papo,
Eddie entrou em incendiada impaciência. A impressão que o atormentava, a de que
o relógio marcaria meia noite, contudo, as dez, com os dois patinhos na lagoa
azul, que ele tanto esperava, para ir buscar a sua Brooke Shields nem por reza
braba. Qual o quê! A Mulher Cadeira (e ele nem sabia ainda, oficialmente, que
ela, a Aryane era a mulher cadeira) certamente mil vezes, mais bonita que a
Brooke.
Sem contar que a cadeira
estava ali, praticamente ao seu lado, ao alcance das suas mãos, da sua
bundinha, enquanto a Shields... Sabe-se lá por onde andaria... Finalmente, após
longa e cansativa exaustão, o instante aguardado e sonhado. Donzela a tiracolo
decidiram dar uma parada na praça de alimentação. Ela pediu refrigerante. Ele
cerveja. Ela optou por batatinhas fritas. Ele por uma porção de calabresa.
Final de noite, shopping
fechando as portas, ponto de ônibus para embarque cada um para sua casa.
- Verei você de novo?
Foi a partir daí que Aryane
contou que, pela manhã, das oito até às quatro, fazia comerciais como modelo de
uma empresa de móveis e utensílios domésticos. Nos comerciais ela protagonizava
a figura da Mulher Cadeira. À noite, das dezoito às vinte e duas horas encarava
uma ocupação extra como vendedora na loja de departamentos onde ele a vira pela
primeira vez.
- Espera aí. Eu ouvi direito?
Mulher sentadeira?
- Cadeira, moço, cadeira...
- E o que você faz?
- Me passo por uma cadeira,
onde a galera entra para comprar e acaba dando comigo ladeada de mesas, sofás,
estantes, camas, guarda roupas, etc. etc...
- E esse pessoal senta em
você?
- Literalmente!
- Meu Santíssimo Sacramento! E
sua estrutura corporal suporta?
(Risos).
- Tipo assim: fico de joelhos,
estico os braços e me prostro como se fosse uma peça de mostruário,
evidentemente com um pano cor de rosa ou preto me cobrindo todo o corpo, da
cabeça aos pés, só os olhos de fora. Todo mundo vem, me dá uma espiada, e um ou
outro acaba dando uma sentadinha.
- Nunca se machucou?
- Só de mentirinha, pra
conseguir junto à minha gerente uma folguinha e dar uma volta pra respirar.
Coisas de mulher...
- Entendi. Legal. Nossa, que
susto!
- Lembra que falei “nem tudo é
o que parece ser?”.
- Com todas as letras. E quanto
a mim? Conseguirei dar uma sentadinha?
- Você quer?
- Muito!
- Eu deixo.
- Aguentará meu peso?
- Só você sentando pra gente
saber.
- Ei gata, sou direito, digo
direto e reto. Quer namorar comigo?
O coletivo que a levaria embora nesse momento
pinta no pedaço. Ela corre afoita, em meio a uma massa enorme de pessoas que
igualmente pretende embarcar.
O jovem insiste na indagação,
aliás, grita, berra:
- Você não respondeu.
Queeeerrr...?!
Aryane não tem tempo de dizer
sim ou não. Eddie a perde em meio a uma
pá de gente. A condução se afasta e ele fica ali parado, triste, macambúzio,
olhar perdido, vendo o buzão dela indo embora e levando a sua cadeira junto.
Seu coração de homem no momento seguinte se enche de pesada melancolia. Lágrimas de tristezas cobrem seu semblante
desolado, como o de um cachorrinho de madame que acabara de cair de um caminhão
de mudanças.
Título e Texto: Carina
Bratt, de Vila Velha, no Espírito Santo, 22-9-2019
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