domingo, 18 de agosto de 2019

[As danações de Carina] Diáspora

Carina Bratt

Dentro do barzinho o sujeito depois de ter tomado umas tantas, começa a dar uma de doidão apaixonado. Meio que cambaleante se dirige até uma mesa onde três moças estão sentadas. Encostando ao lado da mais bonita (não que as outras não fossem) passa a xavecar. Faz isso, contudo, de uma forma diferente e alegre. Cantando:


“Tem feitiço teus olhos
são os mais belos do mundo
olhos assim não existem mais
mais, mais...
Quando eu te vejo
e tu me olhas sorrindo
eu sou tão feliz e digo que te amo
te amo te amo...”.

A jovem abordada leva um susto e, num primeiro momento, estranha aquela atitude. Porém, logo em seguida, numa boa, ao invés de mandar o sujeito plantar batatas, ou solicitar um dos seguranças, resolve entrar na brincadeira. Toma um gole da sua cerveja e dá o troco, desdenhosa:

“Fujo de mim
procurando, esquecer
que você existe...”.

O bêbado, apesar disso, não se constrange. Insiste:

 “Receba as flores que te dou...”.

Sem perder o sorriso indescritível, a maviosa não permite que o rapaz continue. Rebate, desta vez se levantando e solfejando mais alto que ele:

“Enfia em seu nariz que já murchou...”.

Apesar desse gesto meio fora de esquadro, o estrangeiro não perde a pose. Dá uma “bicada” no copo que traz consigo e contra-ataca eufórico:

“Negue
o seu amor
e o seu carinho
diga que você
já me esqueceu...”.

Fazendo um biquinho elegante, a linda despeja a rebatida:

“Saia do meu caminho
eu prefiro andar sozinha
deixa que eu decida a minha vida...”.

O rapaz não se aniquila vencido. Estrondeia:

“Quero me casar contigo
não me abandones tenha compaixão
a coisa que eu tenho mais medo na vida
é saber que um dia posso perder teu coração...”.

Mostrando um centramento anormal, a prestimosa entoa, a clamor envolvente:

“Talvez um dia quem sabe
encontre a felicidade
achando alguém pra valer
até morrer
mas por enquanto, eu não
não ponho argola na mão
casamento enfim,
não é papo pra mim, ô... ô...
Não é papo pra mim...”.

Antes da contradita o desengonçado entorna o restante da bebida em suas mãos. Faz um gesto ao garçom para que traga mais. E segue folgazão:

“Diga logo de uma vez
o que você quer de mim
não me torture mais...
Não me faça mais sofrer
insistindo em me dizer
que pensa em mim demais...”.

Sem perder os trejeitos requintados e garbosos, a catita se faz incisiva:

“Eu daria minha vida para te esquecer
eu daria minha vida pra não mais te ver...”.

As acompanhantes até então caladas, começam a sorrir e a aplaudir diante daquele duelo engraçado sugestionando que ambos continuem o revide. Invocam ao bartender a renovação dos copos, com a vinda de mais uma rodada, dessa vez no capricho. E o cachaceiro, quase a despencar sobre as cadeiras...

“Meu orgulho caiu
quando subiu o álcool
aí deu ruim pra mim ...
E pra piorar
tá tocando um modão
de arrastar o chifre no asfalto
tô tentando te esquecer
mas meu coração não entende
de novo eu fechando esse bar
afogando a saudade
num querosene
vou beijando esse copo
abraçando as garrafas
solidão é companheira
nesse risca faca
enquanto "cê" não volta
eu “tô” largado às traças
maldito sentimento
que nunca se acaba...”

A deusa não espera para contestar. Manda bala:

“Não
tente me enganar
vejo em seu olhar
que já não existe
aquele mesmo amor
que nunca esperou
acabar tão triste...
Não
tente me dizer
palavras que eu
já não acredito
eu posso compreender
o que restou de um amor
que foi tão bonito...”.

O pé-de-cana quase em êxtase, emenda:

“Se a vida inteira
você esperou um grande amor
e de triste até chorou
sem esperanças de encontrar alguém...”

A animação segue nesse tom, quando um deselegante (sempre existe um) se sentindo talvez incomodado, rasteja sorrateiro, o seu esqueleto, fingindo ir ao banheiro. Meio do caminho liga para a polícia militar. Não demora, duas viaturas encostam-se à porta e um bando de policiais adentra acabando com a festa. O pobre pudim de cachaça é retirado praticamente aos tabefes, casa afora, apesar de alguns frequentadores reagirem em contrário gritando que ele não incomodava.

Nem as três moças depondo em seu socorro adiantou. O ganjento se vê algemado e arrastado como um animal furioso para a jaula. O ambiente, a partir daí mergulha num silêncio solene, e as garotas, se sentindo tristes, pelo acontecido, pagam as despesas e deixam o estabelecimento.

No ar, os últimos acordes da voz do cantor solitário ecoam melancólicas numa consternação pesada.
“Tanto tempo longe de você...
quero ao menos lhe falar...
a distância não vai impedir,
meu amor de lhe encontrar...”.
Título e Texto: Carina Bratt, de Vila Velha, no Espírito Santo. 18-8-2019

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