José Diogo Quintela
Esta campanha contra o lítio é bizarra:
estas pessoas desejam energias renováveis, mas não admitem que se extraia o
lítio necessário para as baterias que vão, lá está, renovar a energia.
O primeiro registo de fuga aos
impostos está na Teogonia, de Hesíodo. Escrito no séc. VIII a.C.,
narra, entre outras, a história de Prometeu, o titã que enganou Zeus com o
conteúdo da oferta sacrificial que lhe era devida. Depois de morto e
desmanchado o boi, Prometeu embrulhou a chicha em desagradáveis vísceras e os
ossos em apetitosa gordura. Colocou os dois pacotes à disposição de Zeus que,
ludibriado, escolheu o de aspecto mais tentador. Irritado com o logro,
penalizou os homens, retirando-lhes o fogo. (É provável que tenha sido aí que,
com boa alcatra, mas sem fogo para a cozinhar, a humanidade tenha inventado o
bife tártaro. Estranhamente, Hesíodo não se debruça sobre o tema culinário).
Uma pena desproporcional, a
confirmar a minha velha suspeita de que a Autoridade Tributária tem origem na
Antiguidade Clássica: não só pela ressonância mitológica das punições, mas por
todas as comunicações da AT serem grego para mim.
Entretanto, Prometeu não se
fica e recorre da decisão de Zeus. Mas, sabendo da morosidade da justiça,
principalmente a administrada por imortais, resolve roubar o fogo e devolvê-lo
aos homens. É aqui que Zeus se irrita à séria e condena Prometeu a ser
acorrentado a uma rocha, onde uma águia vem, todos os dias, para lhe comer o
fígado. De noite a isca é regenerada, para que a águia a possa voltar a papar.
É um castigo duro demais.
Sempre achei que Zeus tinha exagerado e que Prometeu não merecia tamanha
condenação. Até hoje. Agora, já acho que a pena é leve. Se Prometeu não nos
tivesse devolvido o fogo, hoje não tínhamos de aturar esta confusão na análise
de incêndios, em que, se há fogos em Portugal, a culpa é do aquecimento global
e falar em responsabilidades do Governo é aproveitamento político; e, se há
fogos no Brasil, a culpa é do Governo e falar em aquecimento global é estúpido.
Nós já dizemos “talho”,
“rebuçado” e “telemóvel”, enquanto os brasileiros dizem “açougue”, “bala” e
“celular”. Agora, há mais uma diferença entre o português de Portugal e do
Brasil: nós dizemos “incêndio causado pelas alterações climáticas, sem que haja
nada que o Governo possa fazer”, e eles dizem “incêndio causado pelo Governo,
sem intervenção das alterações climáticas”.
Prometeu precipitou-se. Nós
não estamos preparados para falar do fogo, quanto mais tê-lo. Esta incoerência
faz-me dores de cabeça. Prometeu merece bem as dores de fígado. Trata-se, ainda
por cima, de uma incoerência que gera ainda mais incoerência. Neste momento, é
normal ver grupos de pessoas que costumam vociferar contra a opressão do
heteropatriarcado ocidental cis supremacista branco racista colonial (não sei
se é o termo correto, limito-me a usar todas as palavras que costumo ler, uma
macedónia de jargão identitário), a defenderem a ingerência num assunto interno
do Brasil. É gente que acha que o grito do Ipiranga tem um asterisco. “Independência*
ou morte!” (*exceto para gestão florestal). Se a Amazónia é o pulmão do
planeta, estes grupos são o apêndice do planeta: não servem para nada e, quanto
mais inchados ficam, mais aborrecem.
São estas pessoas que desejam
energias renováveis, mas não admitem que se extraia o lítio necessário para as
baterias que vão, lá está, renovar a energia. Esta campanha contra o lítio é
ainda mais bizarra por ser também um medicamento usado no tratamento do
transtorno bipolar e estes ativistas tanto estarem excitados com a transição
energética, como deprimidos com o que é preciso para a fazer.
Título e Texto: José Diogo
Quintela, Observador,
27-8-2019
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