Aparecido Raimundo de Souza
SEMPRE ME DESLUMBRO E ME ENTUSIASMO diante dela. La royne Branche comme um lis. Essa inflamação, essa
incitação é inevitável, decisiva, fatal, robusta, imperiosa e irremissível.
Coisa assim, de um novo amor, de um instante fugaz, de sexo animal ainda não
começado, essa Estante, ela, por um instante se faz fêmea sex-appeal, faminta,
gulosa, minha abjeta dentro do objeto maior de ser mulher e ser completa.
Fico, diante dela, calado, com a visão da libido pelada, no sentido de
estar despido sobre a pele nua e crua, os olhos ofuscados deturpados,
entusiasmados loucamente emotivados por um abalo que se renova toda vez que a
toco. Dou bandeira. Saio do sério. Ao alisar suas partes modulares, da cabeça
aos pés, dos pés a cabeça, meus músculos se tornam seu escravo.
Em cadeia se relaxam, se abrandam e se destravam. No minuto seguinte, ao
bolinar noutra banda de seus nichos, um pouco mais abaixo daquela divisória
considerada politicamente anormal e não permitido, meus filamentos se tornam
tensos, inteiriçados, rígidos e casmurrados. O sangue, de repente, passa a
trotar como um Pégaso.
As coisas ao redor escorrem. Drenam furiosas como um rio apressado, com
suas águas aceleradas e violentas enquanto em meu peito, se baseia uma
dormência que aplaina a dor do coração apaixonado como se uma injeção de
Morfina tivesse sido inoculada diretamente na veia. Não sei mais de mim. Igual
menino sem juízo, infelizmente me transformei num robô pós modernamente
apaixonado descobrindo o mundo à frente de meus sustos e receios medos e
tristezas, alegrias e felicidades.
A quentura da sua energia me abraça em demasiada profusão. Estou
encantado por ela. Inteiramente os quatro pneus furados. Em suas peças, num
estante, a essa Estante abraçado, viajo, enquanto corro as mãos por suas
repartições e meritalos os mais diversos. Nesse ponto de convergência
intrínseco, entre o humano e o inanimado, “saio fora” do meu chão.
Transitoriamente cumprimento o espaço.
Peregrino ao acaso, às serendipidades do destino. Ternamente me deito em
nuvens calmas. Sonho. Viador errante retrogrado até o sol, sem ao menos ter as
asas de Ícaro. Volto logo depois e torno a ir e a refluir. No minuto seguinte,
beijo estrelas... Osculo como Zoé Valdês demoradamente cada uma, como se fosse
aquele gesto a derradeira vez e que jamais, por algum motivo, voltará a se
repetir no meu nada cotidiano.
Pasmo, me calo atônito diante da noite. Ela por um instante, a “toda
Estante”, é uma escuridão cheia de volumes grossos, de labirintos
intransponíveis abraçada numa coordenação impecável que se perde na distância.
Sem largar seus tomos e gomos maços e fardeis caules e talos, percebo estarem
seguros em meio à suavidade de suas artérias, toda a literatura do planeta.
Noto, igualmente, entre as quantidades alinhadas, coleções inteiras
ocupando centímetros e metros cúbicos, com nomes de antigos sábios, apelidos de
imortais e ganhadores de prêmios Nobel, sem nunca ter conhecido um sequer
pessoalmente. Sustenta, a minha amada, sob as suas asas e painéis, as escritas
que circulam pelo mundo e apesar de englobar toda essa cultura, jamais se
pousou ao talento de ser dona de si ou do pedaço.
Sua humildade me coloca nas alturas e por essa razão meu carinho por ela
se faz ainda mais especial. Gelo de pura emoção e ouço Belchior, o poeta maior
e a “Princesa do meu lugar”. Ao contrário, destoando de suas células e
mananciais, em meu peito sinto bater pulsante, a imaginação arfante e
tresloucada. Viajo, de novo, para algum romance ainda não aberto à ânsia
concupiscente da minha vontade em devorar o que encontrar pela frente.
Nela percorro capítulos e trilhas inimagináveis. Em pensamentos outros,
ao acaso, momentâneo, me entrego na voracidade do nada e do tudo, como se
estivesse dominado por uma debutante comemorando a sua festa de quinze anos. Ao
sabor do calor das suas sensações, mil sendas se expandem voluptuosas e como um
leque, se abrem sem receios ao meu paladar aguçado.
Por encanto e magia, me acho dentro do meu agora, me descubro todo
envaidecido e senhor de mim. Como tal, me encontro, me percebo, me abasteço me
entrevejo como numa egrégora maçônica. Caio num redemoinho quase abissal.
Percorro novamente ruelas às costas de Júlio Dinis e Saramago. Escorrego em
desvãos de Jorge Amado e Aluísio Azevedo.
Embrenho, como um desbravador, por estradas coloridas de Guimaraes Rosa,
Casimiro de Abreu e Carlos Heitor Cony, com árvores frondosas me lançando
sombras amáveis ao instante seguinte em que ela a Estante, se abre inteira, matreira,
submissa em guarida acessível para me deixar papear Susan Hill e Ariano
Suassuna. Devasto fronteiras ao lado de José Lins do Rego, atinjo cidades em
altos papos com Clarice Lispector e Jojo Moyes.
Combino países com Machado de Assis e Monteiro Lobato me embosco em meio
a um milhão de pessoas com rostos de feições diferentes, ladeado pela companhia
indescritível de Woody Allen e Humberto de Campos. Incansável, respiro quimeras
de Sara Cruen e Lya Luft. Pasmo, encantado, bestificado, em romances de Érico
Veríssimo e recapitulo o “tempo e o vento” de casos de amores desfeitos.
Renovo ao sabor português do Crime do Padre Amaro, as peripécias de Dulce
Maria Cardoso, Vergílio Ferreira e Eça de Queirós. Num piscar seguinte enquadro
outros tantos escrevinhadores de fôlego, como Lima Barreto, Ciro dos Anjos e
Guerra Junqueiro. Choro sorrisos deformados em personagens de Adelaide Carraro
e Cassandra Rios, num peculiar instante de incontida emoção aflorada, recito
Cora Coralina e Ferreira Gullar.
Nesse ponto outros vultosos se achegam e se mesclam ao meu imaginário, ao
meu endoidecido que se fundem aos recônditos das páginas do meu ego mais
profundo quase a tocar Florbela Espanca, Jorge de Sena e Camões. Então me
ponho, sem amarras nas ideias, pedaços de escritores emergentes ao tempo em que
capturo palavras ainda não ditas nem escritas por Veríssimo e Pitigrilli.
E a Estante, nesse instante, ela, de novo, ela, sempre ela em vídeo tape,
sem esperar por um novo aconchegar, e o melhor de tudo, se fazendo valer do seu
desejo ardente, eloquente não espera acontecer. Prática se abre inteira.
Todinha a que veio se mostra, e me ocupa os sentidos numa solidariedade que
enaltece. Segura, madura, ela me enlaça me aperta, me aprisiona.
Faz com que o quieto se levante dos pendurados e se ponha em ascensão, as
confissões do meu pau perfeito. Até os fios de cabelos diante dessa deusa da
fertilidade asséptica, me envolvem e nesse baile, eu me consumo me entrego, me
parto em dois, três, cinco, enfim, me faço de gosto inteiro, levado pelo sabor
adocicado das suas travessuras e peraltices.
Sem melindres, me disponho, me encosto, e, como um Édipo Rei Momo, como,
belisco engulo tomo, me empanturro, leio, leio, leio e usufruto, mexo,
escarneço, gozo, gozo a jorros incontidos num ready-made a la Duchamp. Nesse
instante, a Estante, num instante, afoita, fora de si, louca e descontrolada,
para lá de Bagdá, se fez em renovo, minha amante. Puta amiga.
Virou safadinha e se esvaiu junto comigo num grito animal, divinal, quase
às raias de uma diguice paranoica do pecado-total. Não fossem os “budas
ditosos” chegarem apressados à procura de João Ubaldo Ribeiro, a mando do
“Sargento Getúlio”, partiríamos eu e ela, eu e minha Estante, minha Estante e
eu, para um segundo round. Sem poder esperar mais, e, sobretudo, com medo de
ficar louco, pedi a minha Estante em namoro.
Título e Texto: Aparecido
Raimundo de Souza, de São
Paulo, Capital. 20-9-2019
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