Aparecido Raimundo de Souza
PARA SE ACHAR UMA AGULHA no palheiro, primeiro se faz necessário ter um palheiro ao alcance dos
olhos e das mãos, ou vice-versa. Quanto a isso, ponto pacífico. Seja o palheiro
no quintal ou colado a uma casa de campo. Não existe palheiro em cidades,
tampouco em apartamentos.
Num outro momento, alguém carece ter perdido uma agulha nesse palheiro.
Palheiro que se preza tem que ter uma agulha em suas entranhas para ser
procurada, ou não é palheiro para se levar a sério. Outro detalhe
importantíssimo.
Alguém do seu relacionamento familiar (ou não) tem a obrigação quase
moral de, ainda que por acaso, desprezar uma agulha no palheiro. Logicamente a
esse palheiro, juntamente com quem a desamparou, você precisará ter livre
ingresso, ou em contrário, ficará difícil, ou quase impossível achar a menosprezada
agulha.
Não importa quem a deixou aos reveses da sorte, vítima de vil e malfadado
esquecimento. Se o palheiro estiver alinhado com os seus movimentos de olhos e
mãos, mãos e olhos, certamente a agulha será encontrada. Ainda que demore um
pouco. Uma particularidade que não deverá faltar no rol das “importâncias”.
O tempo. Dependendo do tamanho do palheiro, é provável que se leve uma
quadra grandiosa demais. Estou tocando nesse assunto, porque aconteceu na minha
família, ou mais precisamente com a minha tia Nair, irmã de meu pai. Na ânsia
dos afazeres diários, a desditosa se descurou da vigilância de uma agulha
pequena, presente da mãe dela, falecida.
Nesse caso, não era pela agulha em si. A tia possuía bem umas vinte, ou
mais, de tamanhos diferentes. Poderia ter comprado outra idêntica à
desaparecida. Mas não! A coisa se prendia ao carinho que o pequeno objeto
representava. Tia Nair nutria um amor incondicional por essa agulha minúscula.
Um objeto insignificante, que ela usava praticamente para costurar as
meias de meu tio Dimitri Lambru, pregar os botões nas minhas calças e nas do
Júnior (nós dois beirávamos os vinte e dois, e, apesar dessa idade, fazíamos
estripulias do arco da velha) refazer um rasguinho ou outro nas blusas ou nas
saias de minhas primas Mariza, de dezesseis anos e Yarodara, de dezoito.
A agulha (com uma manchinha vermelha feita propositalmente no meio), para
sobressair das demais, vivia sempre em seu quarto, sobre um criado-mudo que
dividia espaço com outra mesinha de cabeceira igualzinha em tamanho e cor. Esse
objeto, depois de usado descansava espetado junto com as companheiras, numa
baratinha de feltro verde.
Ai da criatura que ousasse tirá-la do lugar costumeiro. A tia virava
bicho e se descobrisse o autor, certamente lhe aplicaria umas doloridas tapas
no meio das pernas. O apartamento de tia Nair, na Ladeira dos Tabajaras, 196
Edifício Neves da Rocha, coração de Copacabana, se constituía enorme, espaçoso,
com várias dependências. Seis quartos e, pelo menos três banheiros, sem contar
os anexos destinados à secretária doméstica.
O palheiro não ficava nesse local. Imponente, e altivo, se erguia quase
solitário nos fundos de uma propriedade que o tio Dimitri adquirira em Guia de
Pacobaíba, em Mauá, ou Praia de Mauá, subdistrito de Magé para onde seguíamos
impreterivelmente todos os finais de semana, chovesse ou fizesse sol.
Essa “quase chácara”, um terreno de cinco mil metros quadrados fora todo
murado, de um extremo ao outro. A velha
casa de alvenaria a dois ou três passos do mar, apesar de muita coisa para ser
feita, possuía dois andares, e no último, um belo terraço com vistas para a
Ilha do Governador.
Logo ao lado da edificação principal, num barracão de madeira se
guardavam as bugigangas fora de uso. Colado a esse tugúrio, o palheiro. Quando
íamos para lá, tia Nair levava a baratinha porta-agulheiro, entre os cacarecos,
caso fosse preciso remendar alguma peça que carecesse de reparo urgente.
Verdade seja dita. Sempre havia um filho de Deus em face das
brincadeiras, quintal a fora, que acabava rasgando os cus das bermudas, fosse
perdendo dois ou três botões das camisas, fosse emperrando os zíperes das saias
das meninas. Numa dessas viagens, a agulha querida e amada se perdeu no
palheiro. A tia em vista disso, fechou o sorriso do rosto, desajeitou os
cabelos, subiu nas tamancas.
Literalmente virou bicho. Quase de sete cabeças. Faltou pouco. Zetinha, a
empregada, jurou de pés juntos que se lembrara de tê-la visto ajeitando uma
cueca do Junior sentada numa poltrona caindo aos pedaços dentro do palheiro,
enquanto tomava café e comia um pedaço de polenta que a serviçal lhe fora
levar. Furiosa, soltando fogo pelas ventas, Tia Nair convocou todo mundo para
ajudar na procura pela minúscula pecinha e prometeu uma pequena recompensa em
dinheiro, para quem desse a sorte de encontrar a infeliz.
A farra do vai daqui pra lá, vem de lá pra cá, teve início, mais pelo
prêmio que viria pelo achado (comer milho cozido e tomar refrigerante “Tubaína”
na velha estação de trem desativada) que pela vontade de voltar a ver a tia
parar de soltar seus impropérios a quem fizesse corpo mole e fingisse estar
procurando a droga da agulha. Nessas horas de enfezamento, a tia Nair se
transformava além do bicho de sete cabeças, num tremendo porre.
Nesse solavanco desajeitado, como se estivéssemos num trem lotado da
Central do Brasil em direção à Japeri, investiga daqui, busca dali, pesquisa
acolá e nada. Quatro ou cinco horas depois, não havia dentro do palheiro um
lugarzinho que não tivesse sido visto, revisto, mexido, vasculhado, bulido ou
alterado. Nada. Nem sinal da porcaria da agulha com a marquinha vermelha.
A tia seguia insatisfeita. Resmungava irritada, inflamada, insuportável,
chorosa e botando pressão na galera:
- A agulha que mamãe me deu. Não é possível! Continuem caçando... Por
Nossa Senhora das Candongas... Essa desgranhenta tem que aparecer, nem que eu
tenha que derrubar esse velho “muquifo”.
Quase oito da noite, hora do jantar, à espera de tio Dimitri sair do
banho, vem lá de dentro do quarto, peito ofegando em respiração larga, chorando
copiosamente a Yarodara, segurando o traseiro, seguida pela Mariza, rindo a
esgangalhos a mais não poder e se fazendo mais palerma que a imbecilidade da
sua zombaria. Ao vestir o pijama Yarodara tomou uma espetada dolorida nas
profundezas dos recuados.
Zetinha acorreu em seu auxílio. “Uma abelha, com certeza, uma abelha –
gritou tia Nair, pelas tabelas. – Só pode! – A casa está infestada!”.
Eu e meu primo Junior, a pretexto de uma ajuda, em solidariedade (na
verdade queríamos espiar o rabicó da dengosa e acender a curiosidade criminosa
da nossa libido) nos demos bem.
Momento supremo, por sinal. Bota supremo nisso. Todos nós, enfileirados
em estreito semicírculo, ao virarmos a queixumosa de costas e acomodá-la no
colo da tia (que não pensou duas vezes para lhe arriar até os joelhos, uma
lingerie que mal cabia no buraco de um dente), topamos, em transbordante
entusiasmo, com a desgranhenta.
Verdade! Lá estava à estropiciosa agulha fujona da tia, sacrificando, com
a sua ponta espetante, a inocência dos brios da prima, entranhada entre a
calcinha confortável e os socavões da bunda magra da azarada.
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de São Paulo, Capital.
6-9-2019
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