Thomas Hobbes
Poderá parecer estranho a alguém que não tenha considerado bem estas coisas que a natureza tenha assim dissociado os homens , tomando-os capazes de se atacarem e destruirem entre si . E poderá portanto talvez desejar , não confiando nesta inferência feita a partir das paixões , que a mesma seja confirmada pela experiência . Que seja portanto ele a considerar-se a si mesmo — ele que , quando empreende uma viagem , se arma e procura ir bem acompanhado ; que , quando vai dormir , fecha as suas portas ; que , mesmo quando está em casa , tranca os seus cofres ; e isto mesmo sabendo que há leis e servidores públicos armados, prontos a vingar qualquer injúria que lhe possa ser feita . Que opinião tem ele dos seus compatriotas , ao viajar armado; dos seus concidadãos , ao fechar as suas portas ; e dos seus filhos e criados , quando tranca os seus cofres ? Não significa isso acusar tanto a humanidade com os seus actos como eu o faço com as minhas palavras ? Mas nenhum de nós acusa com isso a natureza humana . Os desejos e outras paixões do homem não são em si um pecado . Nem tampouco o são as acções que derivam dessas paixões , até ao momento em que se tome conhecimento de uma lei que as proíba; o que será impossível até ao momento em que sejam feitas as leis ; e nenhuma lei pode ser feita antes de se ter concordado quem a deverá fazer .
Poderá porventura pensar-se que nunca existiu tal tempo, nem uma condição de guerra como esta, e acredito que jamais tenha sido geralmente assim, no mundo inteiro; mas há muitos lugares onde actualmente se vive assim. Porque os povos selvagens de muitos lugares da América, com excepção do governo de pequenas famílias, cuja concórdia depende da concupiscência natural, não têm qualquer espécie de governo, e vivem nos nossos dias daquela maneira selvagem que acima referi. Seja como for, é fácil conceber qual era o género de vida quando não havia poder comum a recear, através do género de vida em que caem os homens, que anteriormente viveram sob um governo pacífico, quando entram em guerra civil.
Mas mesmo que jamais tivesse havido um tempo em que os indivíduos isolados se encontrassem numa condição de guerra de todos contra todos, de qualquer modo em todos os tempos os reis, e as pessoas dotadas de autoridade soberana, por causa da sua independência, vivem em constante rivalidade, e na situação e atitude dos gladiadores, com as armas assestadas, cada um de olhos fixos no outro; isto é, os seus fortes, guarnições e canhões guardando as fronteiras dos seus reinos, e constantemente com espiões no território dos seus vizinhos, o que constitui uma atitude de guerra. Mas como através disso protegem a indústria dos seus súbditos, daí não vem como consequência aquela miséria que acompanha a liberdade dos indivíduos isolados.
Desta guerra de todos os homens contra todos os homens também isto é consequência: que nada pode ser injusto. As noções de bem e de mal, de justiça e injustiça, não podem aí ter lugar. Onde não há poder comum não há lei, e onde não há lei não há injustiça. Na guerra, a força e a fraude são as duas virtudes cardeais. A justiça e a injustiça não fazem parte das faculdades do corpo ou do espírito. Se assim fosse, poderiam existir num homem que estivesse sozinho no mundo, do mesmo modo que os seus sentidos e paixões. São qualidades que pertencem aos homens em sociedade, e não na solidão. Outra consequência da mesma condição é que não há propriedade, nem domínio, nem distinção entre o meu e o teu; só pertence a cada homem aquilo que ele é capaz de conseguir, e apenas enquanto for capaz de o conservar. É pois nesta miserável condição que o homem realmente se encontra, por obra da simples natureza. Embora com uma possibilidade de escapar a ela, que em parte reside nas paixões, e em parte na sua razão.
Thomas Hobbes
Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva
Adaptação de Vítor João Oliveira
Retirado de Leviatã (1651) Lisboa: INCM, 2ª ed., 1999, pp. 111-113.
Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva
Adaptação de Vítor João Oliveira
Retirado de Leviatã (1651) Lisboa: INCM, 2ª ed., 1999, pp. 111-113.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.
Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.
Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-