Foi logo em pequeno que Afonso da Silva Brandão percebeu que a vida era uma estrada incerta, repleta de cruzamentos, bifurcações, pontes, túneis e becos, e que cada caminho encerrava um sem-número de mistérios, de segredos por desvendar e de enigmas por decifrar. Animado por uma curiosidade persistente e estimulado por uma inteligência viva e intuitiva, cedo começou a suspeitar de que o mundo era um sítio estranho, um enorme palco de ilusões, traiçoeiro e dissimulado, um dúplice jogo de espelhos onde tudo parecia caótico mas se revelava afinal ordenado, onde as coisas tinham certamente um sentido, mas não necessariamente um significado. Pressentiu, aliás, que era precisamente na existência de um significado que principiava o enigma do significado da existência.
Chegaria o tempo em que se interrogaria repetidamente sobre esse grande segredo, talvez um dos maiores e mais velhos mistérios do universo. A questão do significado da existência. O destino. Iria então tentar decifrar o sinuoso percurso da vida, o inefável caminho que os dias percorrem, um após outro, arrastando-o numa direcção obscura, a rota talvez previamente definida, quem sabe se escolhida por si ou forçada pelas circunstâncias, certamente conduzindo-o através de uma labiríntica rede até ao inescapável fim, como se as coisas fossem fruto de uma conspiração na sombra, preparada por agentes sem rosto numa fantástica conjuração secreta. Procuraria aí a resposta para o enigma que o apoquentava.
Quando esse tempo viesse, Afonso suspeitaria de que a vida era afinal uma tragédia, ou talvez apenas uma grandiosa peça imaginada por um dramaturgo sem nome e representada por atores sonambulescos, intérpretes involuntários de um enredo desconhecido, personagens a quem ninguém jamais teve a gentileza de explicar a trama da história, a intriga estava afinal determinada mas permanecia indeterminável. Talvez essa visão fosse fruto das circunstâncias particulares da sua existência, da sucessão de percursos inacabados que se tornara a sua vida. Confrontar-se-ia então com os sonhos adiados e os caminhos que não percorrera, dos dias que vivera guardaria apenas a cruel nostalgia do que poderia ter sido se as coisas se têm tornado diferentes. Nada era justo, tudo se revelava arbitrário, cada um limitava-se a procurar retirar um significado do caos da existência, como se fosse importante criar uma narrativa, estabelecer um sentido, buscar uma razão, encontrar uma explicação para as coisas que simplesmente acontecem.
Na vida, concluiria um dia, todos têm direito a um grande amor. Uns achá-lo-iam num cruzamento perdido e com ele seguiriam até ao fim do caminho, teimosos e abnegados, até que a morte desfizesse o que a vida fizera. Outros estavam destinados a desconhecê-lo, a procurarem sem o descobrirem, a cruzarem-se numa esquina sem jamais se olharem, a ignorarem a sua perda até desaparecerem na neblina que pairava sobre o solitário trilho para onde a vida os conduzira. E havia ainda aqueles fadados para a tragédia, os amores que se encontravam e cedo percebiam que o encontro era afinal efémero, furtivo, um mero sopro na corrente do tempo, um cruel interlúdio antes da dolorosa separação, um beijo de despedida no caminho da solidão, a alma abalada pela sombria angústia de saberem que havia um outro percurso, uma outra existência, uma passagem alternativa que lhes fora para sempre vedada. Esses eram os infelizes, os dilacerados pela revolta até serem a batido pela resignação, os que percorrem a estrada da vida vergados pela saudade do que poderia ter sido, do futuro que não existiu, do trilho que nunca percorreriam a dois. Eram esses os que estavam indelevelmente marcados pela amarga e profunda nostalgia de um amor por viver.
José Rodrigues dos Santos, in “A Filha do Capitão”, páginas 13, 14 e 15.Digitação: JP
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