A chegada ou não do FMI a Portugal é ilustrada por cenas próximas do teatro do absurdo. E, na Europa ou nos EUA, a política continua refém dos mercados. Imaginemos uma variação do grande clássico do teatro do absurdo, À Espera de Godot, de Samuel Beckett, em que as personagens, em vez de esperarem por um ser indefinido que nunca chega, desesperam e divergem sobre as vantagens ou os malefícios dessa vinda - sem que se perceba finalmente se, para o bem ou para o mal, Godot acabará por servir para alguma coisa.
Os actores agitam-se em diálogos ou monólogos incompreensíveis, numa agitação cada vez mais frenética e à beira da esquizofrenia. Perderam o pé nos papéis que é suposto representarem porque já não distinguem a convicção do fingimento. Tornaram-se marionetas do impulso cego das aparências e dos cálculos imediatos ou do puro instinto de sobrevivência: limitam-se a tactear no vazio, desprovidas de visão e vontade próprias. Assim vão a Europa e Portugal no teatro do absurdo das dívidas soberanas e do dominó dos mercados financeiros.
Esta semana, Portugal escapou por um triz ao destino da Grécia e da Irlanda, evitando a tutela do FMI e do fundo de estabilidade europeu. Para já, Sócrates conseguiu salvar a pele, frustrando durante mais algum tempo - quanto, ninguém sabe - as ambições de Passos Coelho e Paulo Portas de se candidatarem ao glorioso papel de comissários políticos do FMI e deixando também Cavaco Silva à procura do papel que lhe cabe nesta pequena peça doméstica.
Aliás, se não fossem as polémicas sobre o BPN, o deserto mediático e político das presidenciais - que torna hoje particularmente visível a abstracção dos poderes do Presidente da República - ficaria ainda mais desolado.
Há poucos dias, apenas a Espanha parecia destoar do generalizado coro europeu a favor da rendição portuguesa, como forma de evitar o contágio ao poderoso vizinho. Com a sua expressiva declaração de confiança nas políticas do Governo português, a ministra espanhola das Finanças, Elena Salgado, traduzia, afinal, o receio óbvio de que a voracidade predadora dos mercados se voltasse em seguida para o seu próprio país.
Em tudo isto, porém, há outro absurdo e um novo mistério: como seria racionalmente possível que o resgate da dívida de um pequeno país como Portugal - essa minúscula pedrinha na engrenagem a que se referia, há dias, a deputada europeia Elisa Ferreira - fosse suficiente para fazer parar o contágio, não apenas à Espanha mas aos países que se lhe seguiriam no efeito do dominó: a Bélgica, a Itália, a própria França?
Como é que, em tais circunstâncias, se poderia impedir a desintegração da zona euro e da arquitectura política e económica europeia? Como evitar o inevitável apostando numa pirotecnia de artes mágicas e bruxedos preventivos que apenas avolumam a cortina de fumo que impede a Europa de se ver a si mesma?
A entrada do FMI e do fundo de estabilidade europeu na Grécia e na Irlanda apenas criou um fictício cordão sanitário entre os países mais afectados pela peste da dívida e os outros que ainda não estariam contaminados por ela. Como era previsível, o cordão quebrou-se rapidamente e a contaminação ameaça alastrar.
Enquanto a roleta da economia de casino continuar a girar fora dos eixos, nem gregos, nem irlandeses - nem, amanhã, portugueses, espanhóis ou todos os que se seguirem - verão resolvidos os seus problemas estruturais , esse eufemismo tecnocrático do jargão europês que, em nome da produtividade e da competitividade, promove a aplicação de uma única e velhíssima receita: mais austeridade, falências, despedimentos, desemprego. À espera de Godot até ao desespero de Godot.
Dois grandes pensadores europeus, Jürgen Habermas e Edgar Morin, convergiam recentemente no diagnóstico de um dos fenómenos mais preocupantes da actualidade, sobre o qual tenho reflectido nestas páginas: o eclipse do poder político, nas democracias modernas, pelo poder não escrutinável dos mercados.
Habermas refere-se ao «mal-estar crescente face a um sistema político fechado sobre si mesmo e cada vez mais desamparado. Quanto mais se restringe o campo de acção dos governos nacionais, mais a política se submete docilmente ao que se apresenta como imperativos inevitáveis, económicos ou outros, e mais a confiança do povo numa classe política resignada diminui».
E Morin vai mais longe, ao notar que os políticos «colocaram a política a reboque dos economistas» enquanto a «maioria dos Estados obedecem às injunções do FMI». «Por toda a parte, o poder de decisão é o dos mercados, quer dizer, da especulação, quer dizer, do capitalismo financeiro. Por toda a parte, os bancos, cujas especulações contribuíram para a crise, são salvos e conservados. O mercado tomou a forma e a força cega do destino à qual somos forçados a obedecer. A carência do pensamento (.), que separa e compartimenta os saberes sem poder reuni-los para enfrentar os problemas globais e fundamentais, faz-se sentir, acima de tudo, na política».
Já em 2007, outro dos mais estimulantes pensadores contemporâneos, o malogrado Tony Judt, antecipava no prefácio ao seu livro de ensaios O Século XX Esquecido (há pouco traduzido em português): «Não é só a natureza que tem horror ao vácuo: as democracias em que não existem escolhas políticas significativas a fazer, onde a política económica é tudo o que realmente conta - e onde a política económica é agora grandemente determinada por actores não políticos (bancos centrais, agências internacionais ou empresas transnacionais) - podem ou deixar de ser democracias funcionais ou conciliar uma vez mais a política da frustração e do ressentimento político».
Não por acaso, um dos políticos contemporâneos que mais esperanças - e desilusão - suscitaram em Habermas e Morin, Barack Obama, acaba de acentuar uma tendência já notada no início do seu mandato, nomeando para principais conselheiros económicos dois homens intimamente ligados a Wall Street: William Daley e Gene Sperling. Sinais destes tristes tempos.
Vicente Jorge Silva, Sol, 17-01-2011
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