José António Saraiva
Nestes tempos de completa
loucura têm-se dito imensos disparates e passado para a opinião pública muitas
ideias erradas. Destaco oito questões, que merecem um comentário.
DETENÇÃO
Afirmou-se que Sócrates foi
detido “com grande aparato mediático”.
Não é verdade.
Não existe nenhuma imagem da
detenção de Sócrates, nem sequer do seu trajecto através do aeroporto
acompanhado por agentes, depois de detido.
A única coisa que existe é o
vídeo de um carro avançando na noite - aparentemente filmado com um telemóvel
-, que não se sabe quem leva lá dentro.
Se fosse nos EUA, Sócrates
teria sido detido dentro do avião e algemado.
Porém, os agentes esperaram
por ele à saída da manga e conduziram-no por um percurso discreto, em que não
houve contacto com jornalistas.
A detenção não poderia ser
mais recatada do que foi.
POLÍTICOS SÃO IGUAIS?
Alguns comentadores disseram
que uma das consequências desta prisão seria consolidar a ideia de que “os
políticos são todos iguais”.
Todos iguais, como?
Alguma vez na História de
Portugal (e não apenas na democracia) um ex-primeiro-ministro foi preso?
Alguma vez houve um caso
sequer parecido com este?
Esta prisão pode ter o efeito
exactamente contrário: começar a separar o trigo do joio, a boa moeda da má
moeda, para não serem todos metidos no mesmo saco.
Uma justiça independente e
eficaz contribuirá para estabelecer diferenças entre os políticos - e não, como
se pretendeu fazer crer, para os tornar 'todos iguais'.
CARTA DE SÓCRATES
Noticiou-se que, no
'comunicado' enviado à TSF e ao Público, Sócrates “desmentia as acusações de
que era alvo”.
Ora, o texto não desmentia nada, nem podia desmentir, pois aí Sócrates teria de reproduzir as suspeitas que existem contra ele e depois rebatê-las.
Mas isso seria uma violação
grosseira do segredo de Justiça.
O comunicado de Sócrates
limitou-se a seguir a sua velha receita: sempre que é acusado, apresenta-se
como vítima de uma cabala.
Quando saíam notícias que o
comprometiam, Sócrates fazia-se de vítima, virava os acontecimentos a seu favor
e partia para o contra-ataque.
Foi assim no caso do diploma,
no Freeport, no Face Oculta, no Taguspark, etc. - e é assim agora.
Esta carta foi o remake de um
filme velho, numa linguagem gasta: “infâmia”, “abuso”, “falsidade”,
“prepotência”, “imputações absurdas”, “humilhação gratuita”, etc.
Mas, em certo sentido, a carta
de Sócrates era uma carta desesperada.
O grito de alguém que sabe que
dificilmente fugirá a ser condenado e se apresenta ao povo como um D. Quixote que
desafia sozinho a Justiça (“o processo é comigo e só comigo”).
MÁRIO SOARES
Disse-se que Mário Soares foi
a Évora prestar “solidariedade ao amigo José Sócrates”.
Ora, não foi bem isso.
Sem se aperceber, Soares
viajou no tempo até à época da ditadura, em que, na qualidade de advogado,
defendia presos políticos e ia visitá-los à prisão.
Na cadeia de Évora, Soares não
tinha Sócrates na sua frente: tinha um oposicionista do passado, preso pela
PIDE por razões políticas.
Foi por isso que Soares disse,
por exemplo, que Sócrates estava preso “sem ter sido julgado” (frase que só faz
sentido no contexto de um regime ditatorial).
BAGÃO
Bagão Félix achou que o caso
dos Vistos Gold é “mais importante do que as suspeitas de corrupção de
Sócrates”.
Francamente, dr. Bagão!
Então a detenção de
funcionários públicos por facilidades na obtenção de vistos de residência, por
mais altos que sejam os seus cargos, é mais importante do que a prisão de um ex-primeiro-ministro
por suspeitas de corrupção, em proveito próprio, no exercício de funções?
O alegado suborno de um chefe
de Governo para adjudicar obras de construção civil em muitos casos
desnecessárias - obras essas que também contribuíram para levar o país à
bancarrota - é menos importante do que uns vistos, por mais dourados que sejam?
Na sua ânsia de atacar o
Governo, Bagão perde a noção da realidade.
VISTOS GOLD
Foi chocante o modo
diferenciado como muitas pessoas reagiram perante dois casos separados apenas
por oito dias.
No caso dos Vistos Gold,
elogiou-se o trabalho da investigação, ninguém criticou as fugas de informação
nem invocou o segredo de Justiça, deram-se logo os suspeitos como culpados,
falou-se de corrupção ao mais alto nível do Estado, considerou-se “inevitável”
a demissão de Miguel Macedo e todos concordaram que o escândalo afectava o
Executivo de Passos Coelho, ao ponto de António Costa considerar que a partir
daí o Governo ficava “ligado à máquina”.
No caso Sócrates, criticou-se
asperamente a magistratura, invocou-se o segredo de Justiça e atacaram-se os
jornais que o desrespeitaram, considerou-se a detenção “desnecessária e
humilhante”, repetiu-se até à exaustão que os suspeitos são “presumivelmente inocentes”,
não se exigiu a demissão de ninguém, garantiu-se que o escândalo não afecta
muito o PS e que António Costa deve prosseguir o seu caminho como se nada
fosse.
Há pessoas que não têm uma
réstia de pudor.
CORRUPÇÃO
A defesa de Sócrates afirma que
no inquérito “não existem quaisquer indícios de corrupção”.
Será que anda a dormir?
Durante o consulado de
Sócrates, o Grupo Lena passou de pequena empresa regional a grande potentado da
construção civil, com fabulosos contratos no estrangeiro (designadamente na
Venezuela). Até aqui, não se pode dizer nada.
O Grupo Lena foi, nesse mesmo
período, contratado pelo Estado sem concurso público em obras de centenas de
milhões de euros. Mas isto também não prova nada.
Carlos Santos Silva, o amigo
de Sócrates, foi - igualmente no período de que estamos a falar - administrador
do Grupo Lena e, a seguir, de uma empresa criada por este (a Lena Management
& Investments SA, depois chamada XMI). Até aqui, ainda não se pode garantir
nada.
Carlos Santos Silva passou para
a conta de Sócrates (ou deu-lhe em dinheiro vivo) muitas centenas de milhares
de euros ou mesmo milhões, comprou-lhe casas por um preço muito superior ao seu
valor, e cedeu-lhe um luxuoso apartamento em Paris para viver (ou o apartamento
pertencia mesmo a Sócrates e estava no nome do amigo?).
Ora, aqui já a porca torce o
rabo.
Santos Silva deu tanto
dinheiro a Sócrates porquê?
Por ser amigo dele e querer
ajudá-lo num momento difícil da sua vida, quando vivia exilado em Paris sem
meios de subsistência, com o risco de passar fome e ter de dormir ao relento,
como os clochards, em cima das grelhas do Metro?
Não brinquemos!
A partir daqui, não pode
dizer-se que não existem indícios…
PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA?
Toda a gente, sem excepção,
diz que Sócrates goza da “presunção de inocência”.
E diz bem.
A presunção de inocência é uma
figura jurídica (importantíssima) que existe para que um indivíduo não perca os
seus direitos antes de ser condenado.
Mas, em linguagem corrente, a
situação de Sócrates já não é exactamente essa.
E isto porque o juiz, depois
de ver os resultados da investigação, considerou provável que Sócrates tenha
praticado mesmo os crimes de que é suspeito, mantendo-o em prisão preventiva.
Não quer dizer, evidentemente,
que Sócrates venha a ser condenado.
Pode vir a ser inocentado.
Mas, neste momento, a
presunção que sobre ele existe já não é de inocência mas de culpa.
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