Helena Matos
Podemos continuar a discutir
apaixonadamente a prisão de Sócrates e tudo o que de ilegal ele pode ter feito,
mas se não discutirmos o que ele fez legalmente daqui a três anos a troika está
cá de novo
Já não os posso ver: aos
notáveis que vão visitar Sócrates e aos jornalistas que se lhes atiram para
cima para saber do ânimo do antigo primeiro-ministro. (Apenas uma observação:
sorte a dos visitantes dos reclusos de Évora que apesar de tudo não têm de
ficar numa humilhante fila no meio da rua à espera de poder entrar na prisão
como sucede na Penitenciária de Lisboa).
As declarações dos visitantes
no momento da saída são um dos momentos marcantes deste acontecimento: uns
reiteram a sua crença na inocência do amigo, outros referem a sua força
interior e temos ainda o grupo do “Não é possível silenciar o engenheiro José
Sócrates”. Quem do PS ainda não foi a Évora, como é o caso de António Costa,
tem de dar explicações sobre o assunto. O que se tem ou não tem em Évora além
de tema de uma canção está a tornar-se num fado político.
Lamento informar mas quem está
preso é José Sócrates. Não é o PS e muito menos Portugal. Por sinal o país até
está mais livre do que estava em 2011 quando José Sócrates apareceu na
televisão a ensaiar a comunicação do pedido de ajuda externa. Em primeiro lugar
porque conseguimos voltar a financiar-nos nos mercados e em segundo, e não
menos importante, porque os problemas de José Sócrates estão a tornar-se aquilo
que sempre deviam ter sido: os problemas de José Sócrates. Deixaram de ser os
problemas do país.
Esta capacidade de fazer das
circunstâncias pessoais (e tantas elas são!) de José Sócrates um problema
nacional foi um dos mais perversos traços do que se pode designar como
socratismo.
José Sócrates foi objecto de
suspeitas no licenciamento do Freeport e o país logo se distraiu da questão dos
licenciamentos nas áreas protegidas e muito menos se interessou pela cedência à
EDP – que até fazia uns anúncios tão ecológicos! – da exploração por mais 15 a
25 anos de várias de barragens por um valor várias vezes abaixo do
estimado. Discutir com paixão a licitude
das escutas e a validade das provas reunidas contra José Sócrates foi o que nos
arrebatou.
José Sócrates quis afastar
José Eduardo Moniz e Manuel Moura Guedes da TVI e Portugal debateu o
alinhamento do Jornal Nacional da TVI como nunca debateu os tratados em que
alienou parte da sua soberania e muito menos decisões tomadas pelo governo de
Sócrates como o aumento dos funcionários públicos em 2,9 no ano de 2009 ou a
alteração dos estatutos da Estradas de Portugal para que esta se pudesse
endividar directamente e sem limite.
José Sócrates, descobriu-se,
tinha duas fichas biográficas na AR e um diploma de licenciatura com evidentes
inverosimilhanças. Num ápice esta ditosa pátria que não estranhou a aprovação
de sete novas subconcessões rodoviárias em regime de parceria público-privada
desatou a discutir o Inglês Técnico e demais disciplinas dos cursos de
engenharia como se os dez milhões que somos estivéssemos todos inscritos na
Universidade Independente.
José Sócrates foi estudar
filosofia para Paris com o dinheiro que diz ser de um empréstimo da CGD, por
sinal um banco público, e em vez de se discutir a ligeireza para não dizer
outra coisa com que bancos púbicos e privados emprestavam dinheiro, logo nos
atirámos de cabeça para a discussão sobre o inquestionável direito de José
Sócrates a ler o seu Kant ao lado de um prato de croissants.
É caso para dizer: felizmente
para nós que José Sócrates nunca se interessou pela columbofilia ou pela pesca
à linha pois teríamos acabado a discutir as técnicas da anilhagem de pombos e
as minhocas do engodo.
Como não podia deixar de ser a
detenção de José Sócrates fez renascer os piores traços deste tratamento
esquizofrénico que ex primeiro-ministro conseguiu estabelecer com o país. De
imediato começaram umas polémicas que tal como as anteriores logo
deslocalizaram o assunto dos actos imputados a José Sócrates para as suas
circunstâncias. De indignação em indignação, estamos à beira de tornar
consensual que a prisão preventiva (e quiçá a efectiva) apenas pode ser
aplicada aos sem-abrigo indocumentados e de preferência acabados de chegar a
Portugal pois a não ser nestas particulares circunstâncias não estou a ver como
pode alguém ser detido sem que daí advenha prejuízo para a sua reputação.
Nesta perspectiva do mundo as
pessoas que criticam Sócrates fazem-no porque são suas inimigas figadais. E é
aqui no fígado que está o cerne da questão: durante anos José Sócrates
conseguiu que não se discutissem as suas políticas mas sim a sua pessoa. Tudo
se resumia a uma dicotomia entre o problema de fígado de quem o criticava e o
coração militante de quem o apoiava. Esta fulanização serviu às mil maravilhas
para que José Sócrates acentuasse a sua deriva caudilhística. E agora que já
não é primeiro-ministro e o seu partido está na oposição essa fulanização
continua a servir na perfeição para que se continue sem falar das políticas
seguidas e apoiadas pelo PS durante os governos de Sócrates e tudo se restrinja
a uma discussão sobre as recorrentes questões pessoais do anterior
primeiro-ministro.
Que alguns milhões de euros
obtidos de forma ilícita acabem transformados em argent de poche (ou de valise)
de um antigo primeiro-ministro é grave. Mas não só não sei se isso aconteceu
como, por mais chocante que tal seja, um comportamento desses não representa
nem um milésimo do muito dinheiro que gastámos e teremos de gastar a pagar
dívidas, juros, empréstimos e compromissos assumidos para fazer obras,
equipamentos, programas e investimentos tão desastrosos e inúteis quanto
legais.
Denunciar a corrupção
parece-me um imperativo moral – e não fosse a jacobina cabeça dos socialistas
portugueses que se acreditam uma casta superior e ter-se-iam desembaraçado de
José Sócrates em bom tempo. Mas ao centrarmos o discurso nas questões criminais
da corrupção subestimamos as consequências criminosas de muito daquilo a que em
política se chama “promoção do crescimentos”, política para as pessoas”,
“renovar o sonho”, “devolver a esperança”, “outra austeridade”; “alavancar o
futuro”, “dinamizar Portugal”…
Agora que voltamos a ouvir o
canto das sereias com propostas de desorçamentação como a formulada por António
Costa para que a comparticipação dos Estados-membros no novo plano europeu para
o investimento estratégico não seja contabilizada para apuramento do défice
convém que não esqueçamos que desorçamentar pode ser legal (contudo não devia
ser) mas no fim a factura chega sempre e segue sempre para os mesmos: os
contribuintes.
Na verdade podemos continuar a
discutir apaixonadamente a prisão de José Sócrates e tudo o que de ilegal ele
pode ter feito mas se não discutirmos o que José Sócrates fez legalmente daqui
a três anos a troika está cá de novo.
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