Maria João
Avillez
Já
sabia - mas em Julho percebi-o melhor - que deixou de haver chão debaixo dos
nossos pés, o chão que sempre houve, o nosso, fossem altas ou baixas as marés,
amenas ou tempestuosas as estações.
1. Costumo esperar
pelo verão “como por outra vida” (falta-me o ar se todos os anos por esta
altura não evocar a pertença quase física de Ruy Belo à “única estação”) mas
Julho foi como um sapato demasiado apertado, que nunca tivesse usado. Não houve
a festa nem o incomparável brilho do verão, não podia haver, o medo e os mortos
por contar são incompatíveis com o brilho. E a barbárie numa pequena igreja
francesa atacando a Igreja no seu coração é incompatível com tudo. Com tudo o
que herdei, aprendi e vivi na civilização onde nasci. Já sabia – mas em Julho
percebi-o melhor – que deixou de haver chão debaixo dos nossos pés, o chão que
sempre houve, o nosso, fossem altas ou baixas as marés, amenas ou tempestuosas
as estações.
Agora que a Europa deixou de
ser um valor (e um porto) seguro e que o Ocidente agoniza, o mundo em que
entrámos requer aprendizagem e outros códigos mas quais? Transformar o medo em
rotina? Domar esta “expectativa de pior” que já vestimos como uma segunda pele,
da próxima vez será onde e quando? Meter na cabeça de vez que o substantivo
“segurança” caiu em desuso? Habituar-me à aflição desnorteada e desmunida das
lideranças políticas face à irrupção sem pré-aviso do terror? Olhá-lo como uma
banalidade quotidiana, passando a quarta ou quinta notícia do dia?
O terror num teatro, na rua,
num centro comercial mas também na “democrática” Turquia e tenho a horrível
certeza que lá se produz o terror em cadeia, no segredo das prisões, na
demência das purgas, na gelada crueldade das perseguições. Tudo afinal tão
desconforme neste mês de Julho que costumava ser azul e festivo e por isso
incomparável. Pareceram-me quase roubados alguns dos seus deslizantes dias, como
se por momentos me tivessem emprestado o Atlântico, a maresia, o sal, as
noites, as neblinas matinais, ex-libris deste Oeste onde vivo.
2. Sim, é certo,
estamos em ano de hortenses, no jardim há grandes cachos delas, rosa vivo e
azul anil, sim, houve serões de lua cheia no terraço, arribaram os quatro
netos, deixando o eco de uma vozearia indisciplinada pela casa, de imediato em
estado de sítio. E até conheci um lugar no magnífico Alentejo, São Lourenço do
Barrocal, ontem casa de lavoura, hoje, hotel. O traço dotado de Souto Moura
manteve intacto o espírito do lugar, naquela branca e imensa herdade, agora
aberta a hóspedes.
E sim, houve – oh se houve -,
Paul Badura Skoda a tocar na Semana Internacional de Piano de Óbidos (SIPO), e
aí sim, foi Julho e o seu privativo esplendor.
Badura Skoda vai fazer 90
anos, tem o viço de uma flor acabada de colher e a energia de uma atleta de
vinte anos. Toca de cor, costas direitas, mãos vertiginosas de agilidade,
casaco de linho claro e nenhuma sombra de cansaço. Há nele o júbilo intacto dos
génios. Devo este momento em estado de graça – e outros, no passado – a Manuela
Gouveia também ela pianista, que persistentemente, pacientemente,
gloriosamente, “fabricou” este festival e o mantém vivo, com diminuta equipa,
há 23 anos. Óbidos em Julho vale o desvio, Badura Skoda os aplausos, Manuela
Gouveia o meu (veemente) obrigado.
3. Sim,
aconteceram estas boas coisas, consolando o meu Julho, mesmo que por ilusórios,
fugazes instantes. Mas, como dizer? Era sempre como se ao fundo dos dias
houvesse a sombra de uma estranheza, um peso, um desconcerto. Um susto no
coração (outra vez? onde?). Está aí uma nova era. As suas coordenadas por achar
e os seus indefinidos pontos cardiais, propõem-nos o desconhecido como modo de
vida. E um novo mapa para fazer. A cartografia civilizacional “disto”.
4. Não é fácil de
definir esta coisa de ler ou de ouvir contar uma ocorrência onde se esteve e
sobre a qual se está inteiramente informado. Fica-se a balançar solitariamente
entre o pasmo e a vergonha. Com boa vontade lembramo-nos de ser irónicos, mas a
que viria a boa vontade?
Foi porém com alguma ironia
que li e ouvi as versões de um almoço de colaboradores e amigos de sempre que
outros amigos se lembraram de oferecer a Cavaco Silva. Como fui convidada há
meses, lembro-me das razões meramente sentimentais do convite e obviamente sei
que o ardente repasto (35 graus nos jardins do hotel) não tinha como objectivo
(e porque haveria de ter?) minar ou interferir com a homenagem a Mário Soares,
programada para essa mesma tarde. Fez-me lembrar quando alguém dizia que
“estava sempre de acordo com o comentador Marcelo menos nos assuntos que
conhecia”. E conhecendo eu o não “assunto” deste almoço estranhei a
publicitação de uma falsidade e não de uma notícia. Um comensal sentado perto
de mim dizia convictamente achar que “Cavaco Silva fora de longe a pessoa sobre
a qual mais se mentira publicamente em quarenta anos”, mas tenha ou não tenha
razão e eu acho que tem, interrogo-me: porquê, de facto, tão ácida animosidade
e tão ancorado ressentimento? Mentiras que vão além da partidarite aguda ou do
“mostrar serviço”, mesmo que saibamos que a esquerda não se acanha em usar
soldados destes nem cuida particularmente da qualidade de alguns deles.
Que angulosas “forma-mentis”
serão estas que para elogiar Soares têm de denegrir automaticamente Cavaco? Que
produzem convenientes fantasias e insistem em estafadas comparações entre dois
personagens maiores destas quatro décadas, mas fazem-no tão enviesadamente que
tais comparações se esgotam na sua própria caricatura. Uma pena passar-se assim
ao lado do que foi e nós vimos, mas escolhas são escolhas.
É obra insistir-se nelas – com
o mundo como está! – não se sabendo de que serve tamanho afinco mas ele
mostra-nos como o país está fragmentado, dividido e talhado. (Sem que de resto
se veja que haja “anima” para salvar a maionese. Ou gente que sequer se importe
por aí além de a ver tão talhada.)
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Não aceitamos/não publicamos comentários anônimos.
Se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.
Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-