José Conde Rodrigues
O Trumpismo, com a sua imagem de
transgressão face ao sistema, evidenciou uma cisão potencialmente perigosa para
a política: entre os que estão acima e os que estão por baixo na escala
socioeconómica
Muitos se espantam com a
ascensão e vitória de Donald Trump nas primárias do partido republicano.
Alguns, apenas veem neste trajeto um similar do populismo que grassa pela
Europa. Outros, ainda, identificam o momento Trump com o arrivismo que sempre
esteve presente nos atos eleitorais da democracia americana, rapidamente
reabsorvido após a realização dos mesmos.
Em Cleveland, porém, poderá
ter acabado de ver a luz do dia o novo ovo da serpente…
Estará em causa, não só um
novo fenómeno político como, mais importante ainda, está em jogo a eleição do
líder da maior potência mundial (e Trump pode realmente vencer). Assim sendo
convirá que, para além da espuma mediática, para lá da imagem iconográfica e da
forma do candidato, vejamos se há algo de mais substancial a que possamos dar
um sentido ideológico.
Comecemos pelo populismo
emergente, quer à esquerda quer à direita. No seu sentido mais imediato, há
muito que o populismo – definido como a revolta das pessoas comuns contra as
elites dominantes que se servem a si próprias – existe na política americana. Este
o populismo tem sido de esquerda, procurando atingir banqueiros, capitalistas e
as suas corporações (milionários e bilionários na linguagem de Bernie Sanders).
Mas este também assumiu, muitas vezes, um rosto de direita. Nas décadas de 70 e
80, fê-lo sob a liderança de Ronald Reagan, que soube conjugar a aversão
populista e, simultaneamente, libertária ao governo grande e irresponsável. Ou
seja, se o populismo de esquerda teve tradicionalmente como alvo as grandes
fortunas, a elite empresarial barricada em Wall Street, o populismo de direita
(como o Tea Party) concentrou a raiva
na burocracia e na elite progressista do sector público sedeada em Washington.
Ora até há uns meses atrás
parecia que as eleições de 2016 poderiam tornar-se um confronto entre estas
duas formas de populismo, no rescaldo da Grande Recessão de 2008. Venceria,
pensava-se, quem melhor explicasse as causas da crise e dos anos de austeridade
que se lhe seguiram. O que ninguém previa era a erupção, em 2015, de um novo
tipo de populismo, mais acintoso e revoltado, um híbrido, a que podemos chamar:
Trumpismo.
Politicamente, os antecedentes
deste novo populismo podem encontrar-se na década de 90, aquando das campanhas
presidenciais de Ross Perot e Pat Buchanan. Já do ponto de vista intelectual, o
Trumpismo é claramente parecido com a conceção anti-estatista avessa à
globalização e à imigração, ao estilo America First, propagandeada por vários
conservadores tradicionais desde esse período. Não é por acaso que Buchanan,
por exemplo, está atualmente entusiasmado com a candidatura de Trump. Só que,
agora, em vez de descarregar a animosidade apenas na elite de esquerda, Trump
ataca, simultaneamente, as elites conservadoras (daí o não apoio da direita
religiosa de Ted Cruz ou dos neoconservadores como Robert Kagan). Em
particular, o Trumpismo corta deliberadamente com o internacionalismo
conservador que vem do tempo da Guerra Fria e com a ortodoxia defensora do
mercado livre e da economia centrada na oferta que dominou as políticas
republicanas desde 1980.
Mas afinal que fenómeno é
este? Como catalogá-lo nas tradicionais categorias da ciência e teoria
políticas? Numa primeira abordagem, podemos estar a assistir ao nascimento de
uma nova categoria nunca antes vista na América: um grande partido ideologicamente
confuso e nacionalista-populista, que combina elementos de esquerda e de
direita. Nos seus traços gerais e no tocante a políticas públicas, é, em certa
medida, semelhante à Frente Nacional em França, ao UKIP no Reino Unido, ao
Partido da Liberdade na Áustria ou ao partido Alternativa para a Alemanha, bem
como a outros movimentos semelhantes na Europa.
Muitos destes partidos
emergentes ou renascidos são habitualmente classificados como sendo de direita,
mas, do ponto de vista económico, a maioria é claramente estatista e defensora
do Estado-providência. Quase todos respondem à estagnação económica endémica, à
nova migração global e aos terroristas, com soluções protecionistas e ameaças
de uso da força. A motivação do Trumpismo e dos seus equivalentes europeus
reside, essencialmente, num fator: a convicção cada vez mais profunda de que as
elites que governam (veja-se a vergonha de uma Europa liderada por Juncker…)
não têm, nem a competência, nem a determinação, necessárias para melhorar as
coisas.
O Trumpismo, com a sua
aparente imagem de transgressão face ao sistema instalado, acabou por pôr em
evidência uma cisão potencialmente perigosa para a política: já não a cisão
clássica entre esquerda e direita, mas antes entre os que estão acima e os que estão
por baixo na escala socioeconómica. E muitos dos que estão por baixo
encontraram em Donald Trump uma voz para expressar a sua indignação contra a
ignorância total e a condescendência das supostas elites que nos têm governado
através do dito sistema (ele próprio assumiu – eu sou a vossa a voz – no
discurso de nomeação como candidato na passada semana, o que não deixa de ser
um paradoxo se atendermos a que estamos face a alguém que nasceu milionário e
pelo caminho se tem dedicado a negócios ruinosos, em linha com o capitalismo
mais selvagem).
Trump não apresenta
propriamente uma agenda para a economia. Aliás, é comum mudar de ideias todos
os dias. Mas dele emana uma atitude, uma aura de força bruta, um desprezo
arrogante pelas subtilezas da cultura democrática que, segundo o próprio,
conduziram à debilidade da América. As suas propostas, quase sempre
contraditórias, apelam a sentimentos de rancor e desdém, salpicados de medo,
ódio e ira. O seu discurso público consiste em atacar ou ridicularizar uma vasta
plêiade de outros: muçulmanos, hispânicos, chineses, mexicanos, europeus,
imigrantes, refugiados ou mulheres, os quais descreve como ameaças ou objetos
de escárnio. O seu programa, quando aparenta ter algum, assenta essencialmente
em torno da promessa de endurecer o tom para com os estrangeiros e os não
brancos. Vai deportá-los, proibi-los de entrar ou subjugá-los.
Mas o seu grande trunfo e,
simultaneamente, o seu perigo face aos tradicionais republicanos, reside em ter
conseguido estabelecer contacto com o que os pais fundadores da república
americana mais temiam e Alexis de Tocqueville tão bem identificou: as paixões
populares desembestadas, a rua, o primado da multidão (curiosamente, a mesma
multidão de que fala o guru da extrema esquerda europeia, Tony Negri).
Fala-se, a seu propósito, numa
América dividida (The Economist). Muitas vozes conservadoras consideram que
Trump não passa de um apresentador de TV, um mero gerente de casinos, um vulgar
empresário de concursos de beleza ou, na pior das hipóteses, um protofascista
intimidatório. Se já tínhamos o Putinismo na Rússia, agora corremos o risco de
ter o Trumpismo na América, a confirmar a nova vaga global de pendor
autoritário, antidemocrático e antiliberal.
Todavia, goste-se ou não,
Trump e dalgum modo, podemos assumi-lo, o Trumpismo, simbolizam os tempos de
hoje: o universo fugaz do realismo Online, das redes sociais, do reino do
entretenimento, da simplificação consumista, os medos da tecnologia, a rejeição
da diferença, no fundo, o fim do pensamento, a pura ação, a vitória do homo laborans.
E se este é futuro, felizmente
que ainda não o vimos…
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