João César das Neves
Até há uns meses nunca
contemplaria escrever um artigo assim. Em temas financeiros é preciso muito
cuidado ao falar em público. Declarações negativas ou só ambíguas podem ter
consequências drásticas e inesperadas. A base das finanças é a confiança, que
pode ser abalada por frases imprudentes acerca da reputação de uma instituição.
Sou apenas um académico sem qualquer influência real, mas mesmo assim a
prudência recomenda nunca escrever um artigo destes.
Pior, a situação financeira
está ao rubro. Não só o mundo ainda anda combalido, após uma das maiores crises
da história, sofrendo já novos choques, não só as taxas de juro estão a níveis
impensáveis, como a sucessão de assustadores casos bancários nacionais pôs os
aforradores com os nervos em franja. Num clima tão explosivo, nunca escreveria
um artigo assim.
Só que hoje parece que
entrámos num mundo surrealista, onde os responsáveis fazem as declarações mais
inacreditáveis, com ligeireza e insensatez que tocam as raias da loucura. Em
particular, depois do passado dia 18, entrámos no reino da imbecilidade institucionalizada.
Peço desculpa, mas assim vou escrever um artigo destes.
Tudo começou com uma situação
inaudita, ao termos o governo apoiado por forças que há anos pressionam para
que se faça uma reestruturação da dívida. E mesmo depois de terem tomado a posição
de pseudocoligação, PCP e Bloco de Esquerda mantiveram a proposta. Dizer isso
na oposição, como partidos extremistas e irrelevantes, ninguém levava a sério.
Mas a histórica opção de António Costa colocou-os a dominar a situação, e tudo
mudou de figura.
Como é que uma entidade com
responsabilidades políticas pode apregoar que se deve reestruturar a dívida,
enquanto o governo que apoia está todos os dias a pedir mais dinheiro
emprestado? O problema não é terem ou não razão sobre essa necessidade, mas, precisamente
se a tiverem, ser muito estúpido anunciar a urgência. A fazer-se, uma
reestruturação deve ser súbita, disfarçada ou diluída num programa europeu.
Nunca declarada.
A nossa dívida pública é
enorme. Tão grande que não apenas o PCP e o Bloco, mas também os mercados
financeiros têm fortes desconfianças de que a possamos sustentar. Apesar disso,
os sucessivos governos têm garantido que cumprirão pontualmente todas as suas
obrigações creditícias. Porquê? Na visão conspirativa dos esquerdistas isso só
pode ser enfeudamento aos interesses do capital. Mas há outro motivo mais
simples: uma reestruturação fica sempre horrivelmente cara. E aumenta de custo
se for vaticinada.
A atitude é idiota, mas não
teve grandes efeitos, provavelmente porque, apesar de tudo, ninguém ainda leva
a sério quem tem tanta dificuldade em abandonar os hábitos irresponsáveis de
agitador arrivista. Então chegou o dia 10 de Abril de 2016, quando o senhor
primeiro-ministro deu uma grande entrevista ao DN e à TSF. Aí afirmou com naturalidade:
"Acho que era útil ao país encontrar um veículo de resolução do crédito
malparado, de forma a libertar o sistema financeiro de um modo que dificulta
uma participação mais ativa nas necessidades de financiamento das empresas
portuguesas." No dia seguinte, o The Wall Street Journal punha como
título: "O primeiro-ministro português diz que um "banco mau"
pode ajudar a economia".
Se fosse uma potência inimiga
pretendendo minar a confiança na nossa banca, assustar os depositantes e
impedir que investidores estrangeiros cá colocassem as suas poupanças, era
compreensível a afirmação. Na boca de um primeiro-ministro atinge o delírio
suicida. Isso não se diz, faz-se. Ele não fez, conversou sobre o tema. A partir
dessa data toda a gente ficou a saber que a nossa banca está por um fio. A
partir dessa data eu podia escrever um artigo destes. Mas não escrevi, até
contemplar o que nunca acharia possível: ver um governo encostar uma pistola à
cabeça de um banco ferido e serenamente puxar o gatilho.
No relatório que acompanha a
carta que Mário Centeno enviou à Comissão Europeia, nas "Alegações
fundamentadas de Portugal no âmbito do processo de apuramento de eventuais
sanções", está escrito na página 8: "De acordo com a carta e
compromisso da República Portuguesa sobre o Novo Banco, o banco será vendido
até agosto de 2017; se não for, entrará num processo de liquidação
ordeira." Ordeira!? Depois disto, quem quererá ter poupanças nesse banco?
Sem as poupanças, quem quererá comprar o banco? Assim tenho de escrever este
artigo: por favor, alguém diga a esses senhores para se calarem. Com dirigentes
destes, não há sistema que resista.
Título e Texto: João César das Neves, Diário de Notícias, 28-7-2016
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