Paulo Tunhas
As quatro grandes paixões políticas do
século XX foram o anti-semitismo, o anti-liberalismo, o fascismo e o comunismo.
O pensamento democrático e liberal não suscitou paixões intelectuais
excessivas.
Passei uns dias a reler um
livro, já com uns anos, que é, no fundo, uma história das principais paixões
políticas francesas ao longo do século XX: Le siècle des intellectuels,
de Michel Winock. Começa com o caso Dreyfus e acaba praticamente com a recepção
francesa do Arquipélago de Gulag de Soljenítsin e a queda do muro
de Berlim. Como o título indica, as paixões em questão são as dos intelectuais,
expressão criada exactamente na altura do caso Dreyfus. Vale a pena lê-lo. Não
só para nos darmos conta de quão pouca gente, entre os intelectuais do século
passado, soube manter a razão sóbria por um período de tempo razoável, mas
também para perceber que, embora com vestes ligeiramente diferentes, essas
mesmas paixões continuam entre nós.
Winock dividiu o seu livro em
três grandes partes: a primeira, relativa ao caso Dreyfus e à sua posteridade
imediata; a segunda, incidindo sobre o período entre o final da primeira grande
guerra o o final da segunda; e a terceira, que lida com o segundo pós-guerra
até, como disse, ao acolhimento reservado a Soljenítsin pelos intelectuais
franceses e a queda do muro de Berlim. Não faria sentido tentar resumir aqui
estas quase oitocentas páginas (excluindo apêndices, índices, etc.). Mas vale a
pena dar conta de algumas lições fáceis de retirar da leitura do livro de
Winock. Seguem-se algumas, como dizia o outro, “sem ordem nem desordem”, e
igualmente sem referência a um só nome, o que é quase como representar Hamlet
sem o príncipe, já que o livro se centra na análise relativamente detalhada da
evolução de um sem número de príncipes, isto é, de intelectuais. Para quem
estiver interessado, o melhor é mesmo lê-lo.
Não é difícil perceber quais
as quatro grandes paixões políticas do século XX: o anti-semitismo, o anti-liberalismo,
o fascismo (num sentido amplo, englobando o nazismo) e o comunismo. O
pensamento democrático e liberal não suscitou nunca paixões intelectuais
excessivas. Excepto, é claro, paixões negativas. Mas anti-semitismo,
anti-liberalismo, fascismo e comunismo, sim. E é curioso ver como essas paixões
se compuseram entre si. A composição do anti-semitismo com o fascismo é, a
partir de certa altura, quase obrigatória entre os intelectuais, embora não
seja obviamente necessária e haja excepções. Mas a paixão comunista também se
pôde compor com a paixão anti-semita, e os exemplos não faltam. Em geral, de
resto, as paixões negativas (anti-semitismo, anti-liberalismo) suscitam
elementos de identidade entre as paixões fascista e comunista. Os anos 30 são
exemplares disso, e um dos seus sinais indubitáveis foi a dificuldade de vários
intelectuais, alguns muito improváveis, em se decidirem por uma ou por outra.
Há casos notáveis de oscilação. Ou, então, a facilidade de transição efectiva
de uma a outra.
Esta última situação é
particularmente interessante. São vários os casos em que os intelectuais
transitaram, plenos de convicção, de uma paixão comunista para uma paixão
fascista. O trânsito inverso, da paixão fascista à paixão comunista, é, no
entanto, muito mais raro. Isto indica sem dúvida algo de importante e que não é
unicamente explicável em função da situação histórica. Tem certamente a ver com
a própria natureza das paixões. A paixão fascista comporta provavelmente um
princípio de fechamento maior do que a paixão comunista. Dito de outra maneira:
é aparentemente mais fácil a um comunista mudar de paixão política do que a um
fascista. Quer em direcção ao fascismo, como muitos fizeram, quer em direcção à
aceitação da democracia liberal, ou, pelo menos, de uma qualquer forma de
socialismo não totalitário. Mas discutir esta questão – uma questão decisiva, é
verdade – levaria tempo.
Seja como for, as quase
oitocentas páginas do livro de Winock mostram-nos à evidência um facto
inegável: a raridade extrema de casos de sobriedade intelectual, ou mesmo de
casos de quase-sobriedade. Não é que não haja exemplos de intelectuais que,
através da sua evolução, tivessem mantido uma coerência sóbria no seu pensamento
político. Mas são relativamente raros. E os daqueles que guardaram, desde o
princípio, sobriedade a toda a prova, mais raros são. O mais vulgar é
observarmos exemplos de passionalidade desmedida no interior de uma mesma
paixão ou na sucessão de uma paixão para outra.
A dimensão passional, e o
concomitante abandono da racionalidade, tende a acentuar-se, de resto, no tempo
que medeia entre o caso Dreyfus e a época dos compagnons de route do
comunismo. Como nota Winock, existia, por parte daqueles que defendiam Dreyfus,
uma preocupação argumentativa e uma busca da verdade que, pouco a pouco, foi
desaparecendo no debate entre os intelectuais: com os compagnons de
route, a adesão intelectual torna-se um acto de pura fé. É como se a imensa
ilusão transcendental do comunismo automaticamente dispensasse qualquer
preocupação, mesmo muito secundária, com as provas. Daí o rapidamente
instaurado regime de negação relativamente a tudo que pudesse pôr em causa o
ideal, a rejeição liminar da materialidade dos factos.
Até, pelo menos, ao terramoto
provocado, em meados dos anos 70, pelo Arquipélago de Gulag de
Soljenítsin, com a sua descrição detalhada do universo concentracionário
soviético. Um fenómeno tipicamente francês, diga-se de passagem. Em nenhum
outro país da Europa o livro funcionou de tal modo como uma revelação: já se
sabia. Mas em França o peso espesso da passionalidade comunista e dos compagnons
de route tinha, para muita gente, e apesar do processo Kravchenko em
1949 e de uma miríade de outras coisas, antes e depois, guardado
surpreendentemente protegida de crítica a pátria inspiradora do “partido dos
fusilados”: o “Sol da Terra”, como entre nós lhe chamava Cunhal. A partir daí,
as coisas mudaram de forma significativa.
Não é que as quatro paixões
dominantes dos intelectuais do século XX tenham desaparecido. Longe disso. Anti-semitismo
e fascismo, graças àquilo que Kant denominava as virtudes civilizacionais da
dissimulação, que fazem com que o nosso rosto adquira, pouco a pouco, a forma
da máscara que a sociedade nos obriga a usar, não ousam já, nos intelectuais
europeus, dizer abertamente o seu nome. Quando muito, dizem-no de forma
indirecta que pretende ser irreconhecível. O “anti-sionismo”, por exemplo,
substituiu o “anti-semitismo”. Com o comunismo, a situação é diferente. Os
costumes públicos não interditam a manifestação dessa paixão. Se ela não se
exprime como dantes, isso deve-se quase exclusivamente à manifesta redução do
seu apelo. O anti-liberalismo, por sua vez, chama-se agora
“anti-neoliberalismo”, e, como se sabe, há muita gente que anda com ele sempre
na boca.
Essas paixões continuam a
circular, mais ou menos à solta, por aí. Quando, novinho, saía do cinema depois
de ver Os pássaros de Hitchcock, dois
tipos, à minha frente, conversavam. “Ninguém diga que está bem!”, disse um ao
outro, resumindo muito bem a essência do filme. Ora, é justamente isso que se
deve dizer relativamente à vida presente dessas quatro paixões do século XX:
ninguém diga que está bem.
Título e Texto: Paulo Tunhas, Observador,
28-7-2016
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