José Manuel Fernandes
De repente o "optimista
irritante" passou a pessimista envergonhado. O que não deveria surpreender
quem conhece os alçapões que se podem esconder por trás do discurso da
"execução orçamental exemplar"
Parece que o primeiro-ministro
está a descer da estratosfera – mas só em privado, claro, falando para os seus
à porta fechada. Aí o “optimista irritante”
transforma-se num pessimista desconcertante e envergonhado. Seria caso para dizer que mais valia tarde
do que nunca, mas a verdade é que quando a esmola é grande o pobre desconfia –
e nós já não temos nenhuma razão para confiar em António Costa, apenas para
desconfiar do que estará a tramar para se safar na próxima curva da estrada.
Não é necessário ser um
céptico militante, como é o meu caso quando escuto certas “narrativas”
políticas, para já estar cansado com a repetição obsessiva, ad nauseam,
de que tudo está a correr bem com a execução orçamental, tão bem, mas mesmo tão
bem, que esses números se transformaram no principal argumento contra as
sanções de Bruxelas. Agora que essa estratégia parece ter dado com os burrinhos
na água, o nosso primeiro passou à fase em que se queixa aos seus deputados de
que os socialistas europeus não são assim tão solidários como isso, ou mesmo
que, afinal, “os tempos não estão formidáveis”. Só lhe falta admitir – há de
também acabar por acontecer – que a execução orçamental, afinal, também não
está formidável.
Eu, que já ando nisto há uns
anos e vivo com o defeito de ter alguma memória, olho para este filme e vem-me
logo outro à cabeça. Com guião e representação em 2009, tendo no papel
principal um outro primeiro-ministro (José Sócrates) mas contando, no aconchego
dos gabinetes, com alguns dos mesmos guionistas, em particular com alguns dos
mesmos artistas na apresentação de “execuções orçamentais” maravilhosas. Nesse
ano eleitoral passámos meses a ter boas execuções orçamentais e um défice
controlado – na altura passámos os meses necessários até às eleições
legislativas de 27 de Setembro. Depois o dique rebentou e o défice “controlado”
explodiu para 9,8%, o maior registado até então em 40 anos de democracia. Mais
tarde soube-se que, entre outros truques, o governo de então
tinha como que “congelado” o valor do défice ao longo do ano contra as
previsões e os avisos de organismos públicos como a Direcção-Geral de
Contribuições e Impostos.
Em 2011 o filme foi mais ou
menos o mesmo, numa primeira reprise mais curta e mais dramática, e podemos
recordar as fanfarras de então na imagem abaixo, que reproduz duas célebres
capas do Expresso publicadas no mês de Fevereiro desse ano. Todos nos
recordamos do que se passou uns meses depois, tanto com o FMI como com o
défice, apesar do registo quase gongórico destas duas notícias.
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Duas semanas separam estas
duas capas do Expresso publicadas em Fevereiro de 2011. Todos sabemos o que se
passou a seguir.
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Neste momento todos os sinais de alarme começam a acender. Por todo o lado. Sendo que agora há uma diferença grande relativamente a 2009 e 2011: as nossas contas são muito mais escrutinadas do que então eram, Bruxelas tem, e pede, muito mais informação, o BCE e o FMI também enviam regularmente as suas equipas que, mesmo sem actuarem com o grau de intrusão dos anos da “troika”, não deixam de fazer o seu escrutínio, até porque já conhecem algumas das manhas da casa. Daí que o famoso “plano B” nunca tenha desaparecido dos cenários de Bruxelas.
Para se entender do que
falamos quando torcemos o nariz à “excelente execução orçamental” é preciso
começar por perceber que os números que tanto entusiasmam António Costa e Mário
Centeno, os da execução orçamental mês a mês, só nos revelam uma parte da
realidade pois são em “contabilidade pública”, isto é, apenas reflectem as
entradas e saídas de dinheiro mês a mês. É uma contabilidade de tesouraria.
Sem entrar em grandes detalhes, a verdade é que o défice que interessa
não é esse, mas sim o relativo aos compromissos realmente assumidos pelo
Estado. Por exemplo: se um hospital comprar um medicamento e não o pagar de
imediato, essa despesa não é contabilizada na síntese mensal da execução
orçamental (em contabilidade pública), apenas será contabilizada nas avaliações
trimestrais do Instituto Nacional de Estatística (em contabilidade nacional).
É por isso que é tão relevante
perceber a evolução das dívidas do sector público – e se fala tanto da evolução
das dívidas na saúde, aquelas que não desaparecem por haver “cativações” pois,
apesar de já existirem notícias de que há hospitais a pedir papel higiénico a doentes, a verdade
é que tem crescido aceleradamente o número de facturas por pagar (eram 605
milhões em Maio só nos hospitais EPE, um valor que começou a disparar a partir de Janeiro deste ano).
Mas as dívidas que vão ficando
por pagar representam apenas uma pequena parte do que se está a tentar esconder
com os “fantásticos” números da execução orçamental, pois há também pagamentos
em atraso à União Europeia, atrasos nas devoluções de IRS e adiamentos em
transferências para empresas públicas, tudo operações que deverão surgir mais
tarde ou mais cedo nas contas públicas, como surgiram em 2009 e 2011 – agora,
como então, o que se está a fazer é uma gestão política do momento em que se
deixa de esconder a realidade.
Por outro lado, as famosas
cativações que nas últimas semanas surgiram como uma espécie de “arma secreta”
para evitar uma derrapagem nas contas públicas também de pouco valem se não se
tiverem realizado as reformas ou reestruturações que evitem que os serviços
gastem o dinheiro que têm no seu orçamento, sendo que nuns casos elas só serão
mesmo possíveis deixando salários por pagar (o que não irá acontecer, suponho),
ou então deixando os carros das polícias parados por falta de gasolina, para
dar só um exemplo. De resto recordemos que a primeira vez que se falou de cativações no Orçamento de 2016 foi para
se ficar a saber que o Governo tinha recuado na aplicação dessa medida no
ensino superior.
Temos pois razões de sobra
para desconfiarmos. E para estarmos inquietos. Até porque em tudo o mais não
faltam outros sinais vermelhos a pescar. A começar, naturalmente, pela falta de
crescimento da economia. A última previsão conhecida, a do Núcleo de Estudos
sobre a Conjuntura da Economia Portuguesa (NECEP) da Universidade Católica,aponta para apenas 0.9% de crescimento este ano, metade da previsão do Governo. O
principal factor a influenciar este estancar da economia portuguesa é a falta
de investimento, por absoluta falta de confiança dos agentes económicos,
receosos de colocarem o seu dinheiro em negócios que ficam na dependência dos
humores da “geringonça”. Um dos exemplos mais recentes é o da decisão do grupo
Navigator (o novo nome da Portucel) de suspender um investimento de 120 milhões na sua fábrica deCacia, investimento que tinha anunciado em Setembro do ano passado mas que
a empresa parou por causa de exigências feitas pelos Verdes na altura da
formação do actual Governo.
Mas como se isto não fosse
suficientemente inquietante, sabemos agora o que está a representar a famosa, e
“miraculosa”, aposta desta maioria no consumo como forma de “estimular” a
economia e o crescimento: no primeiro trimestre, revelou o INE, a poupança foi negativa pela primeira vez desde que há
registos comparáveis, isto é, as famílias gastaram mais do que tudo o que
receberam em salários, pensões e rendimentos do capital. Pior: essa despesa em
consumo foi sobretudo nos chamados “bens duradouros”, o que trocado por miúdos
significa automóveis. Ou seja, bens importados. Ou seja, o “estímulo ao consumo
das famílias” está a estimular a economia dos países que exportam para
Portugal.
Brilhante, sem dúvida, e um
sinal de que não são só os partidos que não aprenderam nada com erros dos anos
em que o país viveu acima das suas possibilidades (eu sei que esta ideia irrita
muita gente, mas é rigorosamente isso que nos aconteceu desde que o euro criou
a ilusão de que éramos ricos). O Orçamento de 2015, o último da anterior
maioria, já era um orçamento eleitoralista (como na altura assinalei)
e por isso não admira que a sua execução, sem medidas extraordinárias, tenha
ficado naquele limiar (2,8% de défice? 3,05%? 3,2%? Ninguém se entende, nem em
Lisboa nem em Bruxelas) que abriu as portas às sanções. As loucuras evidentes
do Orçamento de 2016 (do irrealismo dos seus pressupostos ao populismo de
certas “reversões”) apenas escancararam ainda mais essas portas, como se torna
evidente quando Bruxelas não pede medidas sobre o passado (ainda não inventámos
a máquina do tempo), mas relativas ao futuro, começando já pelo que falta de
2016.
Tudo isto encaixa bem num
padrão sobre o qual escrevi há mais de dois anos, quando notei que nós já só queríamos voltar à boa vida. Tudo isto mostra como a falta de juízo é
doença que nos custa mesmo a extirpar.
Definitivamente estamos a
assistir a um remake, com novos actores e algumas novidades, como o
equilibrismo da “geringonça”, assim como algumas piruetas no guião e nos
adereços, com destaque para o cachecol da selecção de Mário Centeno. Alegram a
fita, mas tudo o resto é demasiado parecido para poder acabar muito melhor – o
que também não quer dizer que este filme acabe já amanhã, até porque, pelo
menos por enquanto, o Presidente não deverá facilitar. Pode ser até que o diga
nas audiências que marcou com os partidos e os parceiros sociais, numa espécie
de aviso à navegação dos que, de repente, parecem ter perdido o “optimismo
irritante” e já só estar com a cabeça em eleições antecipadas.
Título, Imagem e Texto: José Manuel Fernandes, Observador,
25-7-2016
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