A propósito da polémica sobre os brasões
das ex-colónias na Praça do Império e os 20 anos da CPLP, Fátima Bonifácio
escreve sobre a "selectividade histórica que resulta na amputação da
memória"
Há 20 anos, segundo informou o
vereador José Sá Fernandes no Público de 27 de Agosto de 2014, Portugal – nós
todos, suponho que através da Câmara Municipal de Lisboa – votou ao abandono os
Brasões da Praça do Império, de que hoje sobram apenas uns murchos “restos”
melancólicos que ninguém rega, que ninguém poda, de que ninguém cuida; alguns
definharam ao ponto de desaparecerem, soterrados por baixo das ervas daninhas e
da vegetação selvagem que espontânea e exuberantemente se foram instalando no
terreno.
Em 2014, Sá Fernandes,
vereador responsável pela Verdura e Energia da capital, alegou que aqueles
símbolos do Império “estavam ultrapassados” e que não fazia nenhuma
espécie de sentido conservar composições florais alusivas aos vastos
territórios de um Portugal pluricontinental que cessara de existir a partir de
1974. Porém e misteriosamente, até mesmo paradoxalmente, ao passo que estes
abomináveis “símbolos do colonialismo” – não obstante constituírem um conjunto
único de mosaico-cultura – eram sumariamente condenados a uma morte deliberada
e anunciada, já os “brasões em pedra do lago central” são para manter, segundo
o relatório aprovado pelo júri chamado a pronunciar-se sobre o projecto
vencedor para a requalificação, recuperação ou restauro da Praça do Império (Público, 20.7.2016).
Em suma, há brasões e brasões,
vá-se lá saber porquê. E se certos brasões ofendem a nossa consciência
desembaraçadamente progressista e decididamente anticolonialista, cabe
perguntar por que motivo se não arrasa o Padrão dos Descobrimentos, ali mesmo
ao lado, com a assinatura do mesmíssimo arquitecto, Cottinelli Telmo, e
igualmente ensombrado pela sua ligação umbilical à Exposição do Mundo Português
de 1940. E, já agora, cabe ainda perguntar por que motivo se não arrasam
tantas construções manuelinas, já que todas elas ostentam ornamentações
inspiradas nos elementos náuticos que estão na origem do nosso Império
multicontinental, designação de fachada inventada pelos fascistas para encobrir
o descarnado colonialismo que mancha indelevelmente a gesta lusitana através
dos séculos.
Simoneta Luz Afonso, presidente
do júri referido, tem o bom senso de não ir por aqui. Argumenta que o conjunto
de composições florais em que se integram os brasões não constava do projecto
original de Cottinelli Telmo, e que por isso não podiam tais conjuntos (e tais
brasões) ser considerados “um elemento histórico”; além disso, “foram criados
para uma exposição de floricultura, que era uma coisa absolutamente efémera.” (Público, 20.7.16).
Pois, de facto não constavam
do projecto inicial de Telmo, que era o projecto da Praça do Império
propriamente dita, mas constavam do projecto do jardim quadrangular criado na
mesma altura e para o mesmo efeito comemorativo dos 800 anos da independência de
Portugal, porém desenhado por um outro arquitecto, de seu nome Vasco Lacerda
Marques. Quanto ao destino “absolutamente efémero” que lhe teria sido ab
initio assinado, convenhamos que, para efemeridade tão absoluta,
duraram demasiado tempo. Duraram de 1940 até 1994 (se as datas fornecidas por
Sá Fernandes estão certas, como têm obrigação de estar). Duraram cinco décadas
e meia, mais de meio século, tempo mais que suficiente para terem sido
historicamente consagrados. Como historicamente consagrada está a igreja de
Siza Vieira em Marco de Canavezes, embora conte apenas com 20 anos de
existência.
Bem sei, evidentemente, que
uma igreja não é o mesmo que uma exposição de floricultura ou uma “instalação”
qualquer. Mas só os anos, só a idade não chegam para conferir carácter
histórico a uma construção. Para lhe acharmos um tal carácter é
necessária a Beleza, e é certamente devido a esta transcendência do funcional
(e do actual) que os brasões por lá foram ficando, acabando por integrar
muito naturalmente a Praça do Império e cobrando, deste modo, um inegável
carácter histórico.
A polémica, portanto, é puramente
ideológica e política. Este é o facto que nem os argumentos ditos técnicos
conseguem disfarçar.
(…)
Título e Texto: Maria de
Fátima Bonifácio, Observador,
23-7-2016
Petição pela Preservação da Praça do Império:
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