Rui Ramos
O golpe de Estado de sexta-feira na
Turquia aconteceu num regime que é um golpe de Estado permanente, mas a Europa
preferiu condenar o golpe que durou 4 horas, em vez do golpe que dura há 14
anos.
O golpe de Estado de
sexta-feira na Turquia aconteceu num regime que é um golpe de Estado
permanente, há anos denunciado pela sua restrição das liberdades e perseguição
das oposições”. Porque é que então tantos governos ocidentais se dispuseram a
aceitar a mentira piedosa de que os militares insurrectos são a única ameaça à
democracia na Turquia? Porque é que condenaram o golpe que durou 4 horas, em
vez do golpe que dura há 14 anos?
Não se sabe o que os militares
pretendiam. Mas deveria talvez ser óbvio que o maior perigo para a causa
democrática no país vem, neste momento, de quem governa, porque é o presidente
Recep Tayyip Erdogan quem de facto atropela o Estado de direito e inviabiliza a
alternância pacífica no poder. No rescaldo do golpe militar, Erdogan precipitou
uma orgia de retaliações, saneamentos e ameaças de morte contra milhares de
juízes, militares e funcionários. Foi esse o verdadeiro golpe. Só pela força o
reino de Erdogan poderá um dia ter fim: se já era verdade na sexta-feira, ainda
é mais verdade agora.
Durante muito tempo, os
governos europeus esforçaram-se o mais que puderam para acreditar que Erdogan,
no poder há 14 anos, liderava uma espécie de versão islâmica dos partidos
democrata-cristãos que dirigiram a integração europeia no pós-guerra. Foi assim
que se dispuseram a aceitar a candidatura turca à UE em 2005. Mas Erdogan não é
um Konrad Adenauer. Erdogan é o chefe de um dos movimentos islamistas que desde
o fim do século XX disputam o poder aos militarismos nacionalistas que outrora
dominaram o Médio Oriente. Em 1997, os militares derrubaram o primeiro governo
islamista da Turquia. Erdogan esteve preso. A sua janela de oportunidade
abriu-se quando a pressão europeia, numa época de crise financeira, obrigou as
forças armadas a aceitar a vitória eleitoral dos islamistas em 2002. Erdogan
soube cultivar as expectativas internacionais. Deu-se uns ares pró-europeus,
fez-se reformista, e propôs-se pacificar os curdos. Pôde infiltrar o Estado
para desmontar a única força secular na Turquia – os militares. No Egipto,
entre 2012 e 2013, a Irmandade Muçulmana tentou seguir a mesma estratégia, mas
as forças armadas, ainda coesas, reagiram. Na Turquia, os islamistas ganharam –
com a bênção europeia e americana.
Há na Turquia muita gente que
gostaria de viver numa democracia liberal. A Turquia não é só Erdogan. É também
Orhan Pamuk, por exemplo (autor de um romance, Neve, que é uma
introdução sugestiva à política do seu país). Mas neste momento, é Erdogan e
não Pamuk quem manda. O seu regime aproxima-se, sem muita originalidade, do
tipo de autocracia apurado por Putin na Rússia ou Chávez na Venezuela. Há
eleições, mas reduzidas a plebiscitos; as perseguições políticas são legalmente
maquilhadas por tribunais obedientes; e nunca faltam conspirações para
justificar mais uma brutalidade do poder.
Porque é que os governos
ocidentais levaram tanto tempo a reconhecer que a onça não era um gato
doméstico? Não apenas porque na década de 1990 acreditaram que a globalização significaria
a ocidentalização do mundo, mas também porque a Turquia — uma população jovem
de 80 milhões de habitantes, uma das 20 maiores economias do mundo, com altas
taxas de crescimento, e o maior exército da NATO depois dos EUA –, é demasiado
importante para ser afrontada por uma Europa envelhecida, desarmada e afligida
pelas migrações e terrorismo do Médio Oriente. O novo sultão não precisa de
cavalaria para ameaçar Viena: basta-lhe deixar passar mais migrantes, como no
ano passado. Em Novembro, a UE aceitou fechar os olhos ao autoritarismo de
Erdogan, desde que ele guardasse as fronteiras que a UE já não é capaz de
guardar. “Esqueceram-se de todos os seus valores”, comentou Orhan Pamuk. Não, não se esqueceram: simplesmente, já não
têm força para os lembrar.
Título e Texto: Rui Ramos, Observador,
19-7-2016
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