Num romance de José Saramago,
O Homem Duplicado, uma personagem afirma que ‘as grandes verdades são
absolutamente triviais’. A frase é poderosa e devia ser uma lição, mas entre
nós a trivialidade parece estar sobretudo nas grandes mentiras.
Durante três anos, ouvimos
repetir mil vezes que havia uma fuga de cérebros para o estrangeiro. Afinal, a
emigração recente atingiu sobretudo trabalhadores menos qualificados, o que é
consistente com a evolução do emprego, que há dez anos sofre uma sangria de
pessoas com poucos estudos, ao mesmo tempo que aumentam os postos de trabalho
para licenciados (pela primeira vez passaram o milhão).
Temos vivido numa redoma de
mitos. Num prefácio, Cavaco Silva explicou o que todos os políticos sabem ou
tinham obrigação de saber: o Tratado Orçamental obrigará os Estados da zona
euro a cumprir determinadas regras e, no caso de Portugal, isso implicará
saldos primários de 3% do PIB, além de vinte anos de vigilância orçamental.
Aqui, uma precisão: não serão apenas vinte anos, mas mais, pois o Tratado
obriga à vigilância de orçamentos, pois foi redigido para obter esse efeito.
Enfim, o cálculo que o Presidente faz é simples: para pagar juros da ordem de
3,5% a 4% do PIB e conseguir défices estruturais de 0,5%, reduzindo o rácio da
dívida ao ritmo previsto no Tratado, o País terá de ter rigor orçamental e crescimento
razoável, o que implica um acordo político entre partidos.
Avaliando pelas reacções, as
perspectivas de um tal acordo não parecem famosas. O prefácio do Presidente foi
o pretexto para uma campanha a favor da reestruturação da dívida. Ora, metade
desta está nas mãos de bancos portugueses, que teriam de pagar a reestruturação
(e como pagariam eles os créditos que receberam?). Por outro lado, é fácil
tentar confundir rigor com austeridade. Estamos condenados a orçamentos
equilibrados, mas ao contrário do que se escreve, isso não nos condena a cortes
eternos. O saldo primário de 3% só parece impossível a pessoas que se enganaram
sempre ao longo dos últimos cinco ou seis anos, o crescimento nominal de 4% só
parece um resultado marciano para quem não leia os relatórios da troika, há até
quem não perceba que o rácio de dívida diminui à medida que o PIB nominal
aumenta.
Ninguém diz à opinião pública
que será possível aumentar as maturidades dos empréstimos europeus, mas por
iniciativa dos europeus. Também se evita dizer que uma reestruturação hostil
rebentava com a banca portuguesa e levava provavelmente à saída de Portugal da
zona euro: isso implicava a destruição de poupanças, subida de taxas de juro e
da inflação, o desemprego a explodir. Aí sim, haveria fuga de cérebros. Ninguém
explica que é preciso continuar a cortar na despesa, talvez uns cinco mil
milhões de euros até 2018, dependendo do ritmo de crescimento. A alternativa é
não cumprir o Tratado Orçamental e abandonar a zona euro.
O que está aqui em causa? Para
além da banalidade da demagogia, está a continuação da mentira. Esgota-se o
tempo para travar de vez o processo de reformas. Alguns sectores da política
portuguesa (incluindo protagonistas que nos levaram ao colapso) acreditam que a
mudança já foi demasiado longe e tem de parar. E não há responsáveis por três
anos de mentiras, nem há autores publicados que façam um pequeno mea culpa:
durante três anos falaram todos da espiral recessiva, dos juros que nunca
desceriam para 4,5%, da fuga da melhor geração de sempre, da dívida que não
podia ser paga, do programa de ajustamento que nunca seria concluído, do
crescimento que jamais voltaria, do desemprego cuja redução era sazonal, das
reformas que não eram de todo possíveis. Sistematicamente enganados e continuam
a mandar na opinião publicada.
Título e Texto: Luís Naves, Fragmentário,
11-03-2014
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