
Em primeiro lugar esse
emblemático case relaciona-se
diretamente com o instituto da recuperação judicial de empresas, tão (e
merecidamente) festejado como precursor de novos tempos em matéria empresarial,
mas que, segundo estudo recente, vem naufragando em seus objetivos,
proporcionando menos de 1% de êxito nas recuperações judiciais do país.
O caso Varig é emblemático
neste sentido. A empresa entrou em recuperação judicial em 2005, mesmo ano da
promulgação da Lei 11.101, com sérios problemas de governança corporativa e
dívida acumulada da ordem de R$ 5 bilhões. Mas, a seu favor, contavam a força
de seu nome comercial, uma extensa frota de aeronaves a jato, 12 mil
funcionários, o valioso plano de milhagem aérea, os slots nos aeroportos mais
importantes do país e direitos de tráfego nacionais e internacionais. Acima de
tudo – fato que se irá correlacionar diretamente com o “apagão aéreo” mais
adiante – um histórico patrimônio de know-how
e liderança no setor aeronáutico brasileiro. Investidores e credores privados
olhavam com otimismo para o plano de recuperação que fora estruturado pelos
trabalhadores com base em consultoria especializada, e tudo indicava que a
Varig iria decolar novamente.
Entretanto, os destinos da
recuperação judicial foram outros. E, passados cinco anos após o início do rito
processual, o passivo da empresa havia triplicado, alcançando a impressionante
esfera de R$ 18,6 bilhões. O modelo de governança corporativa certamente
poderia explicar o estado financeiro grave a que chegou a companhia. Mas é
importante compreender por que o primeiro caso de recuperação judicial no país,
e um de seus mais emblemáticos, fracassou. E por que a recuperação judicial
ainda não deu certo no Brasil.
Em primeiro lugar, é
necessário reavaliar-se o papel do Comitê de Credores na Recuperação Judicial.
A Lei 11.101/05 o previa como uma de suas mais importantes e fulcrais
inovações, na medida em que descentraliza, democratiza e torna mais eficiente a
condução dos negócios da empresa em dificuldades, multifacetado em suas nuances
financeiras e jurídicas. Na práxis norte-americana, o Comitê de Credores (art.
1102 e segs. do conhecido Chapter 11) assume função sobranceira, sobretudo por
seu ativo papel fiscalizatório, concomitante às tarefas do administrador
judicial, possuindo o comitê ou o trustee por ele apontado, amplo acesso a
dados relevantes anteriores e concorrentes à reorganização, revelando ou
inibindo a prática de fraude, má-fé, má-gestão etc. Parece razoável, pois, que
se alargue a participação e o poder decisório dos credores quanto aos destinos
e administração dos bens da empresa recuperanda, pois eles têm mais a perder do
que o dono ou o juiz da causa, sejam eles prestadores de serviços e bens,
trabalhadores, entes estatais ou entidades financeiras.
Seja como for, havia concreta
expectativa, jurídica e financeira, pelos credores e interessados da extinta
empresa (trabalhadores, fundo de pensão, autarquias, bancos, empresas de
leasing etc.) que os ativos então remanescentes, somados aos potenciais
créditos oriundos da bilionária ação tarifária permitissem a recuperação da
companhia. A disposição dos credores era uníssona em torno de seu objeto comum:
recuperar a empresa e seus créditos.
Mas, sem a voz do Comitê de
Credores, o caminho trilhado rompeu com o plano inicialmente engendrado.
Promoveu-se a alienação de praticamente todos os ativos operacionais da
companhia. Com isso, a companhia não se recuperou, milhares de trabalhadores
especializados ficaram desempregados. Outras centenas de profissionais de
excelência foram exportados para companhias aéreas estrangeiras na rota de fuga
do desemprego, e o não-ressarcimento do fundo de pensão levou milhares de
pessoas a sofrer um dos maiores calotes previdenciários da nossa história. Por
fim, veio a falência.
Uma terceira questão
importante revela a outra face da moeda na redução do protagonismo dos credores
no rito de recuperação: trata-se do ativismo judicial, tema que tem estado na
ordem do dia de muitos juristas e operadores do Direito. Como se sabe, o
princípio do dispositivo é mitigado nos processos de recuperação e falência,
mas há que se encontrar o devido equilíbrio, pois no afã de “conduzir” a
recuperação ou produzir decisões “justas”, e ao materializar a norma, acaba por
solapar os fundamentos democráticos da lei e afastar-lhe dos limites
hermenêuticos de compatibilidade constitucional. O Direito, lembra Eros Roberto
Grau, “não se interpreta em tiras”. E, se divorciada do sistema jurídico, a
atuação interpretativa do julgador deslegitima-se, pois dá origem a norma
estranha ao contexto normativo. Relembre-se, também, Lênio Streck, quando
destaca os perigos de a carga moral que o legislador insculpiu na lei ou nos
princípios confundir-se com a moral individual do julgador. Não são a mesma
coisa. Um advém do processo democrático; o outro, do autocrático.
Ainda neste diapasão, as
notícias acerca de possíveis irregularidades envolvendo varas empresariais,
administradores judiciais e cartórios, que se propalaram na mídia, têm
transmitido à comunidade jurídica, a agentes financeiros, a investidores e
empresários e à sociedade em geral a impressão de que os velhos e conhecidos
problemas que sempre macularam os processos de falência e concordata sob a
égide do anterior diploma falimentar ainda persistem. Isso conspira contra a
confiança no instituto e, se de fato ocorrem, contaminam sua eficácia.
Por fim, posto que longe de
esgotar o assunto, mas talvez o aspecto mais relevante em termos prospectivos,
está a accountability. Tem a ver com
a responsabilidade pela ou na prestação de contas. É o famoso “quem responde”.
Na legislação européia, já se exige que determinados cargos recebam rótulo que
identifique a responsabilidade administrativa, ou melhor, qual o gestor
responsável, e.g., accountable manager.
Isto evita a enorme perda de tempo processual no momento de identificar os
responsáveis pelos atos praticados causadores de danos a outrem. E,
naturalmente, isto vale também para os agentes públicos, ainda que a
impessoalidade constitucionalmente disposta implique a accountability do ente
público, ressalvado o direito de regresso deste.
E, ao se falar em
responsabilidades, o sempre recorrente tema dos atos ilícitos do Estado e da
ausência de celeridade na prestação jurisdicional. Aqui, como em vários outros
casos Brasil afora, a questão toma proporções incomensuráveis. Durante a década
em que a ação transcorreu, a Varig faliu. Uma empresa cuja vida mistura-se à
própria vida do país em vários de seus momentos. E faliu porque, como visto,
fracassou a tentativa de recuperação judicial, a qual se iniciou com uma dívida
da ordem de R$ 4 bilhões, montante próximo, a valor presente, da quantia em que
foi condenada a União a ressarcir a aérea.
A que se segue a inevitável
pergunta: teria a Varig falido se a União tivesse reparado seu ilícito
tempestivamente ou houvesse a Justiça prestado seus serviços de forma célere?
Com a palavra, juristas e sociedade.
Título e Texto: Paulo Murillo Calazans, advogado e
mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC-Rio.
Revista Consultor Jurídico, 25 de março de 2014
Revista Consultor Jurídico, 25 de março de 2014
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