quinta-feira, 20 de março de 2014

A Questão da Dívida (Portuguesa)

Miguel Frasquilho
Como seria de esperar, o Manifesto “Preparar a Reestruturação da Dívida Para Crescer Sustentadamente”, subscrito por 74 personalidades de todos os quadrantes políticos e sociais, e apresentado na semana passada, tem concentrado boa parte das atenções mediáticas, e têm sido esgrimidos os mais variados argumentos a favor e contra a tese de que só reestruturando a dívida pública como os signatários propõem Portugal pode vencer a crise que atravessa.

Não tenho dúvidas de que é positivo e salutar que a sociedade civil se possa organizar em iniciativas que proporcionem um debate enriquecedor e esclarecedor, facilitando a tomada de decisões acertadas e que favoreçam o nosso futuro colectivo. Não creio, porém, que seja este o caso – quer pelo timing, quer pelo conteúdo.

Timing. Dificilmente poderia ser mais desadequado: em vésperas quer de eleições europeias, quer de Portugal terminar o Programa de Assistência Económica e Financeira (PAEF) de forma favorável (dado que se conseguiu evitar um segundo resgate). Ora, abrir a discussão deste tema
(a) apenas reforçaria as divisões que a actuação de forças políticas eurocépticas e nacionalistas, em franca progressão nas sondagens, tem acentuado entre o Norte da Europa, por um lado, e o Sul e a Periferia, por outro;
e (b) aumentaria o receio dos investidores, faria subir os juros pedidos para financiar a dívida pública portuguesa (dificultando o acesso pleno ao financiamento em mercado), prejudicaria a (ainda frágil) recuperação da economia e dificultaria, portanto, ainda mais, as já exigentes condições de pagamento da dívida.

Conteúdo. O Manifesto propõe o alongamento das maturidades e a descida dos juros – uma, digamos, “restruturação camuflada”, de que Portugal (tal como a Irlanda) já beneficiou por duas vezes desde o início do PAEF (maiores prazos de pagamento da dívida e menores custos são sempre favoráveis para quem é devedor e está em dificuldades), sem sofrer as consequências de um haircut (“corte de cabelo”) ou perdão explícito de dívida. Porém, os subscritores do Manifesto vão mais longe, e admitem uma “reestruturação camuflada” que se estende à dívida detida por credores não oficiais, quer nacionais, quer estrangeiros. De facto, não pode ter outra leitura a passagem “ (…) Há que estabelecer qual a parte da dívida abrangida pelo processo especial de reestruturação no âmbito institucional europeu. O critério de Maastricht fixa o limite da dívida em 60% do PIB. É diversa a composição e volume das dívidas nacionais. Como é natural, as soluções a acordar devem reflectir essa diversidade. A reestruturação deve ter na base a dívida ao sector oficial, se necessário complementada por outras responsabilidades de tal modo que a reestruturação incida, em regra, sobre dívida acima de 60% do PIB (...) ”. Ora, a dívida pública portuguesa ascende a cerca de 129% do PIB, assim repartida: 14% do PIB é detida pelo FMI (e os empréstimos concedidos por esta instituição a qualquer país não podem sofrer alterações das condições e prazos de pagamento); 40% do PIB encontra-se na posse dos fundos de resgate europeus e do BCE; a restante dívida, cerca de 75% do PIB, encontra-se nas mãos de credores não oficiais portugueses (45%) e estrangeiros (30%). Ou seja, de acordo com a proposta do Manifesto, envolver só os credores oficiais europeus numa reestruturação da dívida seria insuficiente – e uma parte do restante endividamento, interno e externo, teria que ser igualmente perdoada...

Mesmo só através da extensão de maturidades e da descida dos juro, e não de um haircut explícito (um “não pagamos”), tal configuraria uma situação semelhante à que a Argentina decidiu em 2001 (e de cujos efeitos ainda hoje padece), a Grécia teve que sofrer em 2012, vários países sul-americanos experimentaram nos anos 80 do Século XX e... a que Portugal teve que recorrer, pela última vez, em... 1891!... A nível interno, seriam afectadas as contas de quem possui dívida pública portuguesa: famílias (detentoras de Certificados de Aforro e de Certificados do Tesouro, por exemplo), bancos, companhias de seguros e outros agentes, e também o Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social (onde estão aplicadas as contribuições sociais dos Portugueses, para garantir o pagamento das pensões de reforma, cujo valor seria também reduzido em face da reestruturação).

Externamente, Portugal perderia novamente a confiança dos investidores, o regresso ao normal financiamento em mercado não aconteceria, terminar favoravelmente o PAEF seria uma miragem e o Pós-Troika deixaria de ser “Pós”... por muitos e muitos anos. O efeito exactamente oposto ao pretendido pelos subscritores do Manifesto...

Esteve, por isso, muito bem o Primeiro-Ministro quando rejeitou liminarmente qualquer reestruturação da dívida pública portuguesa. Nem a sua posição podia, em minha opinião, ter sido outra: se tal tivesse acontecido, aí sim, todos teríamos razões para ficarmos muitíssimo preocupados. Então queremos regressar ao pleno financiamento em mercado e a mensagem oficial a transmitir aos investidores seria “temos dificuldade em cumprir as nossas obrigações e, portanto, queremos agora reestruturar a dívida pública”?!... Não, nem por sombras!...

Reestruturações de dívida não oficiais são sempre de evitar – e mesmo as oficiais, só com o acordo dos devedores devem ser ponderadas. Até porque o argumento de que já são praticadas, correntemente, reestruturações com outros créditos e outros credores, como os pensionistas e os funcionários públicos (através dos cortes de pensões e de salários na esfera pública) não colhe: quem está endividado tem que ter como prioridade obter financiamento – sem o que tudo o resto é colocado em causa.

Tenho para mim que haverá um tempo (próximo) para que as condições de reembolso da dívida pública portuguesa na posse dos fundos de resgate europeus e do BCE possam ser (de novo) melhoradas, alongando novamente maturidades e descendo juros – como, repito, já aconteceu por duas vezes nos últimos 3 anos – e até, quem sabe?, beneficiando de um período de carência no pagamento dos juros. É que, previsivelmente, terá lugar, depois das eleições europeias, um terceiro resgate à Grécia, a 50 anos e com juros muito baixos – condições que poderão ser estendidas a países encarados como cumpridores, como Portugal e Irlanda, de molde a facilitar o pagamento das suas dívidas.

Mas estas coisas não se anunciam – fazem-se, acertam-se discretamente com os credores, longe de um mediatismo que pode ser (muito) prejudicial. Afinal, como já em diversas ocasiões referi e escrevi, a Europa está tão interessada como Portugal em que o fim do PAEF e o período que se segue corra de forma favorável para o nosso País... e para o projecto da Zona Euro. Estou convencido, por isso, que nos serão proporcionadas as condições para que tal possa ser uma realidade. Para que possamos contornar a questão da dívida.
Título e Texto: Miguel Frasquilho, “4R – Quarta República”, 20-03-2014

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