Como seria de esperar, o
Manifesto “Preparar a Reestruturação da Dívida
Para Crescer Sustentadamente”, subscrito por 74 personalidades de todos os
quadrantes políticos e sociais, e apresentado na semana passada, tem
concentrado boa parte das atenções mediáticas, e têm sido esgrimidos os mais
variados argumentos a favor e contra a tese de que só reestruturando a dívida
pública como os signatários propõem Portugal pode vencer a crise que atravessa.
Não tenho dúvidas de que é
positivo e salutar que a sociedade civil se possa organizar em iniciativas que
proporcionem um debate enriquecedor e esclarecedor, facilitando a tomada de
decisões acertadas e que favoreçam o nosso futuro colectivo. Não creio, porém,
que seja este o caso – quer pelo timing,
quer pelo conteúdo.
Timing. Dificilmente poderia ser mais desadequado: em vésperas quer
de eleições europeias, quer de Portugal terminar o Programa de Assistência
Económica e Financeira (PAEF) de forma favorável (dado que se conseguiu evitar
um segundo resgate). Ora, abrir a discussão deste tema
(a) apenas reforçaria as
divisões que a actuação de forças políticas eurocépticas e nacionalistas, em
franca progressão nas sondagens, tem acentuado entre o Norte da Europa, por um
lado, e o Sul e a Periferia, por outro;
e (b) aumentaria o receio dos
investidores, faria subir os juros pedidos para financiar a dívida pública
portuguesa (dificultando o acesso pleno ao financiamento em mercado),
prejudicaria a (ainda frágil) recuperação da economia e dificultaria, portanto,
ainda mais, as já exigentes condições de pagamento da dívida.
Conteúdo. O Manifesto propõe o alongamento das maturidades e a
descida dos juros – uma, digamos, “restruturação camuflada”, de que Portugal
(tal como a Irlanda) já beneficiou por duas vezes desde o início do PAEF
(maiores prazos de pagamento da dívida e menores custos são sempre favoráveis
para quem é devedor e está em dificuldades), sem sofrer as consequências de um
haircut (“corte de cabelo”) ou perdão explícito de dívida. Porém, os
subscritores do Manifesto vão mais longe, e admitem uma “reestruturação
camuflada” que se estende à dívida detida por credores não oficiais, quer
nacionais, quer estrangeiros. De facto, não pode ter outra leitura a passagem “
(…) Há que estabelecer qual a parte da
dívida abrangida pelo processo especial de reestruturação no âmbito institucional
europeu. O critério de Maastricht fixa o limite da dívida em 60% do PIB. É
diversa a composição e volume das dívidas nacionais. Como é natural, as
soluções a acordar devem reflectir essa diversidade. A reestruturação deve ter
na base a dívida ao sector oficial, se necessário complementada por outras
responsabilidades de tal modo que a reestruturação incida, em regra, sobre
dívida acima de 60% do PIB (...) ”. Ora, a dívida pública portuguesa
ascende a cerca de 129% do PIB, assim repartida: 14% do PIB é detida pelo FMI
(e os empréstimos concedidos por esta instituição a qualquer país não podem
sofrer alterações das condições e prazos de pagamento); 40% do PIB encontra-se
na posse dos fundos de resgate europeus e do BCE; a restante dívida, cerca de
75% do PIB, encontra-se nas mãos de credores não oficiais portugueses (45%) e
estrangeiros (30%). Ou seja, de acordo com a proposta do Manifesto, envolver só
os credores oficiais europeus numa reestruturação da dívida seria insuficiente
– e uma parte do restante endividamento, interno e externo, teria que ser
igualmente perdoada...
Mesmo só através da extensão
de maturidades e da descida dos juro, e não de um haircut explícito (um “não pagamos”), tal configuraria uma situação
semelhante à que a Argentina decidiu em 2001 (e de cujos efeitos ainda hoje
padece), a Grécia teve que sofrer em 2012, vários países sul-americanos
experimentaram nos anos 80 do Século XX e... a que Portugal teve que recorrer,
pela última vez, em... 1891!... A nível interno, seriam afectadas as contas de
quem possui dívida pública portuguesa: famílias (detentoras de Certificados de
Aforro e de Certificados do Tesouro, por exemplo), bancos, companhias de
seguros e outros agentes, e também o Fundo de Estabilização Financeira da
Segurança Social (onde estão aplicadas as contribuições sociais dos
Portugueses, para garantir o pagamento das pensões de reforma, cujo valor seria
também reduzido em face da reestruturação).
Externamente, Portugal
perderia novamente a confiança dos investidores, o regresso ao normal
financiamento em mercado não aconteceria, terminar favoravelmente o PAEF seria
uma miragem e o Pós-Troika deixaria de ser “Pós”... por muitos e muitos anos. O
efeito exactamente oposto ao pretendido pelos subscritores do Manifesto...
Esteve, por isso, muito bem o
Primeiro-Ministro quando rejeitou liminarmente qualquer reestruturação da
dívida pública portuguesa. Nem a sua posição podia, em minha opinião, ter sido
outra: se tal tivesse acontecido, aí sim, todos teríamos razões para ficarmos
muitíssimo preocupados. Então queremos regressar ao pleno financiamento em
mercado e a mensagem oficial a transmitir aos investidores seria “temos
dificuldade em cumprir as nossas obrigações e, portanto, queremos agora
reestruturar a dívida pública”?!... Não, nem por sombras!...
Reestruturações de dívida não
oficiais são sempre de evitar – e mesmo as oficiais, só com o acordo dos
devedores devem ser ponderadas. Até porque o argumento de que já são
praticadas, correntemente, reestruturações com outros créditos e outros
credores, como os pensionistas e os funcionários públicos (através dos cortes
de pensões e de salários na esfera pública) não colhe: quem está endividado tem
que ter como prioridade obter financiamento – sem o que tudo o resto é colocado
em causa.
Tenho para mim que haverá um
tempo (próximo) para que as condições de reembolso da dívida pública portuguesa
na posse dos fundos de resgate europeus e do BCE possam ser (de novo)
melhoradas, alongando novamente maturidades e descendo juros – como, repito, já
aconteceu por duas vezes nos últimos 3 anos – e até, quem sabe?, beneficiando
de um período de carência no pagamento dos juros. É que, previsivelmente, terá
lugar, depois das eleições europeias, um terceiro resgate à Grécia, a 50 anos e
com juros muito baixos – condições que poderão ser estendidas a países
encarados como cumpridores, como Portugal e Irlanda, de molde a facilitar o
pagamento das suas dívidas.
Mas estas coisas não se
anunciam – fazem-se, acertam-se discretamente com os credores, longe de um
mediatismo que pode ser (muito) prejudicial. Afinal, como já em diversas
ocasiões referi e escrevi, a Europa está tão interessada como Portugal em que o
fim do PAEF e o período que se segue corra de forma favorável para o nosso
País... e para o projecto da Zona Euro. Estou convencido, por isso, que nos
serão proporcionadas as condições para que tal possa ser uma realidade. Para
que possamos contornar a questão da dívida.
Título e Texto: Miguel Frasquilho, “4R – Quarta República”, 20-03-2014
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