terça-feira, 11 de março de 2014

Querida excepçãozinha

Helena Matos
Os polícias querem ter as regalias inerentes à sua condição de agentes de segurança. Regalias essas que passam por sete suplementos remuneratórios - suplemento de Patrulha, de Turno e Piquete, de Comando e Residência a que se juntam o intrigante suplemento Especial de Serviço e o ainda mais intrigante suplemento por Serviço nas Forças de Segurança.


E escrevo intrigante pois não se percebe, ou pelo menos eu não percebo, como pode um agente de segurança receber um suplemento por estar de serviço e outro ainda por estar de serviço nas forças de segurança. Terão os agentes de segurança ido ao engano quando se candidataram ao lugar e agora têm de ser compensados por isso? E uma vez nas forças de segurança não era suposto estarem ao serviço?

Mas a excepcionalidade termina assim que se deixa de falar de estatuto e remunerações pois como quaisquer outros trabalhadores os agentes de segurança usufruem do direito a organizarem-se em sindicatos e e muito particularmente a manifestarem-se em moldes que os aproximam mais das claques de futebol do que do mundo do trabalho.

Na mesma linha a Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP) exige que o Estatuto dos Magistrados Judiciais seja revisto no sentido de o separar de qualquer remissão para o regime da Função Pública. Segundo li neste mesmo jornal a ASJP quer abolir os tectos máximos aos salários e a indexação ao vencimento do Presidente da República. Em resumo propõe que a Constituição blinde o estatuto remuneratório dos juízes.

Naturalmente essa excepcionalidade não se aplica a outros direitos, como o direito à greve, dos quais os juízes não prescindem. Já os militares fazem manifestações como qualquer civil mas indignam-se de cada vez que a excepcionalidade do seu estatuto é no seu entender beliscada.
 
Estes são alguns exemplos daquilo que em Portugal tem sido o mais eficaz modo de vida para as diversas corporações: conseguir que o Estado lhes garanta a excepcionalidade nas regalias e o regime geral no momento das reivindicações. Quando esta duplicidade chega às forças de segurança, aos magistrados ou aos militares vê-se o perigoso paradoxo a que esta duplicidade nos conduziu. Os grupos que pela natureza das suas funções deviam ter regimes excepcionais tornaram-se numa casta pretoriana que o povo não respeita e que o poder político teme e que por isso mesmo desautorizará assim que tiver oportunidade.(Ou será que já ninguém se lembra da marinha reduzida ao zero naval e das razões que levaram a GNR a passar de corpo de élite a vigilante de caminhos rurais?)

Mas os polícias de cara tapada simulando uma tentativa de invasão do parlamento versus polícias a fazer de conta que contêm os colegas são também um símbolo da nossa incapacidade para resistir à retórica igualitarista. Há décadas que basta alguém pronunciar as palavras igualdade e discriminação para que imediatamente aquilo que defende por mais disparatado, injusto ou desadequado que seja se transforme numa fatalidade cujas consequências depois se verão. E assim temos pessoas que não se casam porque não querem mas que depois enquanto trabalhadores, inquilinos ou pensionistas reivindicam direitos iguais àqueles que casaram. Funcionários públicos que querem ser iguais aos trabalhadores do sector privado na hora de negociar salários mas não no momento de se discutir a idade e o cálculo da reforma, os dias de férias ou número de horas de trabalho... Exemplos não faltam. Mas afinal como podiam eles faltar num país em que a cada Inverno com a regularidade de quem cumpre um ritual vemos surgir o grupo dos indignados com o mar?

Dos dez milhões de portugueses que somos devem contar-se pelos dedos de uma mão aqueles que não gostariam de ter uma casa junto ao mar. Alguns conseguem-na. E entre esses há os que frequentemente, graças a interpretações assaz excepcionais dos PDM, POOC e demais legislação conseguiram a casa, restaurante, espaço... dos seus sonhos não só ao pé do mar mas mesmo em cima das dunas e das falésias. Nas maravilhosas noites de Verão em que o mar lhes torna infinita a sala de jantar essas casas são naturalmente deles e apenas deles. Mas quando chega o Inverno todos nós nos tornamos proprietários das ditas casas e restaurantes pois somos chamados a pagar obras que "impeçam o avanço do mar", expressão que é mais ou menos sinónima de obras de milhões de euros que obviamente outras marés destruirão.

E contudo, por mais absurdo que tudo isto possa parecer estou em crer que esta é a mais poderosa ideia existente em Portugal: uma casa na duna durante o Verão mas isolada do mar no Inverno. Ou por outras palavras um regime especial para os privilégios e outro, geral, para os deveres.
Título e Texto: Helena Matos, Diário Económico, 11-03-2014

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