Rafael Marques de Morais
“Torturaram-me com paus e
catana, nas nádegas, nas costas, no peito e na barriga durante quase uma hora e
meia”, conta Alberto António Henda [foto acima], de 24 anos, destacado como
operador de registo eleitoral na comuna de Cabiri, município de Icolo e Bengo,
em Luanda.
“Juntaram os dois dedos
grandes dos meus pés, ataram-nos um ao outro. Juntaram os meus cotovelos e
amarraram-nos e depois juntaram os dedos amarrados aos cotovelos. Amarraram os
dedos dos pés aos cotovelos e continuaram a torturar-me assim”, descreve o
brigadista.
Esta é a chamada “tortura do
avião”, usada como principal método de interrogação e abordagem de detidos
pelos agentes do Serviço de Investigação Criminal (SIC) e da Polícia Nacional
no Icolo e Bengo. Os colegas de Henda sofreram o mesmo martírio, e ainda
ouviram relatos de outros detidos que antes tiveram tratamento idêntico.
Porquê?
Tudo começou a 10 de Dezembro.
Alberto António Henda, Gaspar Domingos Dias de Elvas, Cordeiro João Gonçalves e
o motorista José Luís Lameira Leite apresentaram-se à brigada fixa de registo
eleitoral na comuna de Cabiri, a cerca de 20 quilómetros de Catete.
A brigada está localizada numa
residência a 10 metros da esquadra local da Polícia Nacional em Cabiri. À
excepção de Cordeiro Gonçalves, residente no Bairro da Mabuia, em Cabiri, todos
os restantes vivem em Catete.
Antónia Diogo Capiriquito,
chefe da brigada, incumbiu-os da missão de procederem ao registo de eleitores
nas povoações de Calengue, a mais de 28 quilómetros de Cabiri, e da Ilha
Negala.
De acordo com Alberto Henda,
“a brigada tem sempre a protecção de um agente da Polícia. Quando saímos em
missão, deixámos o agente João Gomes. O colega que deveria rendê-lo ainda não
tinha chegado e deixámos a ração alimentar e o bidon de água para ele”.
Por volta das 9h00, a equipa
partiu para a missão.
Gaspar Elvas, de 28 anos, fez
o registo sozinho na povoação de Calengue, com pouco menos de 30 habitações,
enquanto os outros dois e o motorista continuaram até à Ilha Negala, onde
exerceram as suas funções.
Por volta das 14h00 horas
regressaram todos à brigada. Encontraram um agente da Polícia Nacional à porta.
“Ele perguntou-nos se a nossa chefe sofria de gota ou qualquer outra doença,
porque estava estendida no chão, desmaiada”, explica Cordeiro Gonçalves, de 18
anos.
Os brigadistas acorreram para
prestar assistência à chefe, e notaram a sala revirada, parte do seu cabelo
postiço no chão e os cartões de eleitor espalhados no chão. “Os tablets dos
três colegas que estavam de folga mais o da chefe tinham desaparecido,
incluindo a mochila do Alberto Henda, que tinha deixado com os seus livros,
para estudar para uma prova de recurso”, explica Gaspar Elvas.
“Minutos depois de termos
regressado da missão, o agente policial a quem chamamos Ti Jerry apareceu.
Estava de serviço nesse dia e ainda não tinha chegado quando saímos”, continua
Elvas.
De acordo com o seu
depoimento, “o Ti Jerry disse-nos que tinha estado a descansar na esquadra, a
cerca de 10 metros da residência onde está a nossa brigada, e que não tinha
visto nada e não se tinha apercebido do assalto”, relata o mesmo brigadista.
“Ligámos para a nossa direcção
e explicámos que sofremos um assalto. A polícia enviou uma ambulância dos
bombeiros, acompanhada pelo inspector-chefe Lourenço João Miguel Francisco
‘Loló’ [responsável da Ordem Pública, Patrulhamento e Vigilância].” Tudo isto
ainda segundo Gaspar Elvas, que fez o telefonema.
“Diante do inspector-chefe
Loló, o polícia que se encontrava de guarda apresentou outra versão. Disse que
tinha ido defecar às barrocas quando se deu o assalto e que não viu nada”,
testemunha Alberto Henda. “A nossa brigada tem casa de banho, e ficámos
surpreendidos com a justificação do Ti Jerry”, acrescenta Gaspar Elvas.
“A direcção pediu-me para
acompanhar a chefe ao Hospital Municipal de Icolo e Bengo, em Catete. Após ter
recebido assistência, a chefe recuperou os sentidos”, conclui Alberto Henda.
Ao hospital acorreram o
administrador de Cabiri, Bab Loy, vários oficiais da Policia Nacional, do SIC e
responsáveis locais dos serviços de registo eleitoral. Todos se dirigiram à
sede da administração municipal, onde reuniram e discutiram o sucedido, com a
presença e o testemunho de Alberto António Henda.
Contactada por Maka
Angola, Antónia Capiriquito preferiu manter-se em silêncio. Todavia,
segundo depoimentos recolhidos junto dos brigadistas, Antónia Capiriquito
informou ter sido atacada por dois jovens, de tez clara, um dos quais a agrediu
violentamente com a pistola na cabeça e a arrastou pelos cabelos, até que ela
perdeu os sentidos.
No terreno, “fizemos a perícia
com os investigadores e a nossa direcção mandou-nos para casa”, afirma Gaspar
Elvas.
Entretanto, fonte do
Ministério da Administração do Território (MAT) – responsável pelo registo
eleitoral – garante ao Maka Angola, escusando-se a ser citado,
que “não houve assalto. A chefe da brigada desmaiou por doença. Os trabalhadores
roubaram os tablets e esconderam-nos”.
“O pessoal do MAT encontrou os
tablets através do sistema de GPS”, acrescenta. “Há casos de brigadistas que
simulam assaltos e tentam roubar os equipamentos, mas são sempre apanhados
porque temos GPS”, conclui.
Sobre a tortura, a fonte
oficiosa do MAT prefere não se pronunciar, afirmando desconhecimento do
caso. Maka Angola enviou várias perguntas ao Gabinete de
Comunicação Institucional e de Imprensa do MAT sobre o incidente e aguarda
resposta oficial.
“Isso é mentira. Essa resposta
[oficiosa] é a informação inventada pela polícia, a dizer que simulámos o
assalto com a nossa chefe”, denuncia Alberto Henda.
Gaspar Elvas reforça o
testemunho de Alberto Henda. “Isso é pura mentira. A nossa chefe [Antónia Capiriquito]
prestou declarações à PGR e desmentiu a invenção dos polícias, que chegaram a
afirmar que ela sofre de espíritos.”
Este portal tentou contactar
por via telefónica o comandante municipal da Polícia Nacional de Icolo e Bengo,
mas sem sucesso.
O dia da desgraça
No dia seguinte, 11 de
Dezembro, por volta das 5h00, o responsável do Registo Eleitoral em Icolo e
Bengo, Domingos Firmino, ligou aos três brigadistas que trabalharam em Cabiri e
pediu-lhes que se deslocassem à administração municipal para conversarem sobre
o assalto.
“Às 6h00, o Serviço de
Investigação Criminal (SIC) foi buscar-me a casa. O Ti Jerry, o agente de
guarda durante o assalto, foi quem mostrou a minha casa e acompanhou a minha
captura. Recolhemos o outro colega, Gaspar, no Bairro da Terra Nova, e só não
encontrámos o Cordeiro, na Mabuia, porque tinha saído muito cedo para responder
à chamada do nosso director. Mal chegámos ao comando da Polícia Nacional, em
Cabiri, separaram-nos e começaram a torturar-nos. O inspector-chefe Loló
chefiava a tortura. Ele chegou a acusar a nossa chefe, enquanto me torturava,
de sofrer de kalundús e ter fingido o seu desmaio”, relata
Alberto Henda.
Gaspar Elvas diz que não
sofreu espancamentos, só chapadas, mas denuncia ter sido vítima da “tortura do
avião” por hora e meia: “Ainda sinto dores nos pés. Os meus calcanhares quase
batiam na minha nuca. Eu estava de barriga para cima. As dores eram terríveis.”
Por sua vez, Cordeiro
Gonçalves afirma: “O director Domingos Firmino levou-me pessoalmente à unidade
policial em Cabiri. Assistiu ao meu espancamento mal os agentes do SIC me
receberam, e não interveio em minha defesa.”
Diante de Domingos Firmino, de
acordo com o seu testemunho, os agentes deram umas bofetadas no rosto de
Cordeiro, despiram-lhe a camisola, descalçaram-no, retiraram-lhe os pertences e
encaminharam-no para uma sala suja para a “tortura do avião”.
“Juntaram e amarraram os dedos
grandes dos meus pés, passaram a corda por trás, amarraram os polegares com a
mesma corda e os cotovelos. Pisaram-me na cabeça e nas costas, durante meia
hora, e o inspector-chefe Loló queria obrigar-me a confessar que eu tinha
roubado os tablets e que os outros já tinham confessado”,
narra Cordeiro.
Entre os torturadores, os
jovens identificaram os agentes conhecidos apenas como Gugu, Márcio, Dongala e
Poly, comandados pelo inspector-chefe Lourenço João Miguel Francisco “Loló”.
“Eu não poderia falar nada,
porque eu não sabia de nada. Eu mal conseguia respirar pela forma como fui
amarrado. Depois entrou outro oficial, que me deu vários pontapés no estômago e
ordenou que me desamarrassem”, continua o brigadista.
Os jovens e o motorista, que
depois também foi detido, ainda que poupado da tortura, foram encaminhados para
a Direcção Provincial do Serviço de Investigação Criminal (SIC) em Luanda.
“O Gugu entregou-nos ao SIC em
Luanda como os ‘assaltantes da brigada eleitoral’. Encaminharam-nos para uma
cela onde passámos duas noites. Na terça-feira passada, no período da tarde,
recebemos os mandados de soltura e fomos inocentados”, conclui Cordeiro.
Segundo os jovens, os serviços
de monitoria do Ministério da Administração do Território localizaram os
tablets, por GPS, nas proximidades da brigada fixa, no mesmo dia do assalto,
escondidos no capim. Afirmam também que foi Cordeiro quem tomou a iniciativa de
sugerir que os investigadores entrassem em contacto com o MAT para accionarem o
mecanismo de localização.
Continua.
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