Helena Matos
Em meados de junho no tempo em que tudo
corria bem rebentou a crise da deputada cigana. Depois aconteceram Pedrógão e
Tancos e o caso da deputada cigana foi encerrado. Agora é a vez de Gentil
Martins
1. O país está a regressar ao normal e num sinal inequívoco do
regresso a essa normalidade já voltou ao bom hábito da indignação semanal. Esta
semana, as fúrias, os chiliques, os ais e os uis caíram sobre Gentil Martins que declarou ser a
homossexualidade uma “anomalia” e as barrigas de aluguer um crime. Pelo meio, Gentil Martins ainda fez uns comentários sobre Cristiano Ronaldo. Quanto à
homossexualidade discordo de Gentil Martins, já no caso das barrigas de aluguer
concordo: independentemente do que diga a lei vejo-as como um crime.
Gente pressurosa ameaça Gentil Martins com queixas na Ordem dos Médicos e a Ordem logo responde que as queixas (ainda não apresentadas mas apenas anunciadas) irão ser analisadas pelo Conselho de Jurisdição da Ordem dos Médicos. Tudo isto aconteceu num sábado, pormenor não despiciendo quando se
conhecem, nos dias úteis quanto mais ao fim-de-semana, as reservas, as delongas
e o apego aos procedimentos por parte dessa mesma Ordem se solicitada a pronunciar-se acerca do comportamento clínico dos médicos.
Sobre partos mal feitos a
Ordem dos Médicos demora a falar, e se o faz usa mil cautelas. Já acerca das
opiniões produzidas por um médico sobre a mãe de Ronaldo e as mães dos filhos
de Ronaldo a Ordem garante rápida e pressurosamente que se vai pronunciar.
Antes da indignação com Gentil
Martins e os seus considerandos sobre a homossexualidade e as barrigas de
aluguer, tivemos a extraordinária crise da deputada cigana. Como ponto prévio a
essa crise tão crucial quanto oca é importante explicar que apesar de ciganos e
não ciganos sermos todos iguais, numa daquelas contradições em que o
igualitarismo é pródigo, chamar cigano a alguém pode ser considerado um
insulto. Ou, mais confuso ainda, se alguém disser que num determinado edifício
vivem ciganos isso pode ser visto como racismo mas se os locatários desse mesmo
edifício fizerem um agrupamento musical e o designarem como “ciganos disto ou
daquilo” a isso chama-se orgulho das raízes.
Mas vamos então à crise da
deputada “dita cigana”: estava-se em meados de junho no tempo em que tudo
corria bem e um eurodeputado do PS chamou cigana a uma colega de partido. Logo
veio António Costa não só mostrar a sua indignação como defender a expulsão do
eurodeputado em causa: “É uma vergonha” – declarou indignado e inconformado
António Costa. Depois aconteceu Pedrógão e os seus 64 mortos e dezenas de
feridos. Em seguida foi o roubo de Tancos. António Costa não só não pediu a
expulsão de ninguém como não pareceu particularmente envergonhado em momento
algum.
2. Por agora a deputada “dita cigana” parece esquecida e Gentil
Martins acabará a ser deixado em paz (ser velho é nestes casos uma vantagem)
mas não duvido que voltaremos à rotina destes autos de fé contemporâneos.
Porque é através destes autos de fé, dessas reações espalhafatosas e
verbalmente inflamadas, que os radicais mantêm capturada a sociedade.
Durante anos e anos milhares
de militantes de grupos e grupúsculos de esquerda consumiram-se em lutas
internas para determinar à luz de Marx, Lenine, Trotsky ou Mao, quem era da
linha vermelha e da linha negra, seguidista, carreirista, obreirista,
desviacionista, divisionista, capitulacionista, espontaneísta, legalista,
arrivista, capitulacionista ou liquidacionista (há mais categorias mas estas
recolhidas em menos de dez minutos já traçam um retrato aproximado do que
entretinha aquelas cabeças).
Por estranho que possa parecer
a um observador, esse mundo demencial longe de se ter extinto, no final dos
anos 80 espalhou-se qual mancha de óleo sobre as nossas vidas: os outrora
militantes tornaram-se ativistas e muito devidamente instalados em gabinetes
universitários desataram a determinar assédios, homofobias, racismos e questões
de gênero. Tal como no passado: os meios justificam o seu fim na hora de provar
que ainda existe quem não concorde com as suas regras. Ou que não manifestando
uma discordância direta às vezes acusa num comentário à hora do café ou no
intervalo de uma reunião que algum recanto do seu cérebro ainda precisa de mais
um pouco de doutrina. (Neste domínio de mundo quase orwelliano que estamos a
construir aconselho a leitura da entrevista dada ao Observador por Maria do Mar Pereira, professora associada no
Departamento de Sociologia da Universidade de Warwick (Reino Unido) e diretora
do Centre for the Study of Women and Gender: o que a senhora designa como
investigação sobre gênero parece transcrito do manual das polícias dos anos 30
para observação e correção de atitudes desviantes).
É um erro fatal acreditar que
basta ignorar esta gente para não se ser afetado pelo seu zelo inquisitorial: o
que comemos, bebemos, vestimos, as palavras que ensinamos aos nossos filhos e
os brinquedos que damos aos nossos netos, tudo é pretexto para que imponham as
suas teses e executem a sua engenharia social. Mais, são eles quem decide o que
se pode ou não discutir. Durante anos trataram depreciativamente como dramas de
faca e alguidar o que depois fizeram uma causa sua: a violência doméstica.
Agora determinam que não se pode falar de questões de segurança: é populismo,
dizem.
Um dia farão dos assaltos às casas uma bandeira e logo toda a sociedade
terá de ir a reboque do que de mais destrambelhado lhe ocorrer propor. No caso
da família e do sexo foi precisamente isso que aconteceu: de início a luta pela
igualdade entre homens e mulheres foi vista como um desperdício burguês porque
a igualdade que contava e da qual decorriam todas as outras era a igualdade
entre classes. Abstenho-me de escrever aqui o que os defensores da igualdade de
classes então diziam sobre os homossexuais. Anos depois já nem de sexo se fala,
vivemos numa espécie de ditadura andrógina ao serviço de uma entidade chamada
gênero. Um dia esquecerão o gênero e outro tema os inebriará. Com igual
espírito inquisitorial.
3. Durante a entrevista do Expresso a Gentil Martins é abordada a
questão das barrigas de aluguer. Pergunta o Expresso: Como é que vê a hipótese de um homem solteiro ter filhos recorrendo a uma barriga de aluguer, como alegadamente foi o caso de Cristiano Ronaldo?
Não deixa de ser curiosa a
referência do Expresso ao estado civil de Ronaldo como se esse
estado civil tivesse alguma relevância para o caso. Ora o problema do recurso
às barrigas de aluguer não está no facto de ser um homem solteiro o autor da
encomenda/compra da criança. Fosse Ronaldo casado, por exemplo com a enigmática
Georgina, e o problema seria o mesmo: com que direito se separaram essas
crianças da sua mãe? Que implicações teve essa separação na vida dessas
crianças e da sua mãe?
Um relatório realizado em França entre 2015 e 2017 analisou
em detalhe consequências naquele país e no mundo do chamado direito à criança.
No caso das barrigas de aluguer as conclusões são aterrorizadoras: mães jovens
e pobres aceitam contratos em que durante nove meses são tratadas como
escravas. Os encomendadores impõem um modo de vida, definem-lhe as deslocações
e o modo de vida: se podem ou não pintar as unhas, o regime alimentar – ai os
especiais cuidados com a alimentação biológica! – proíbem-lhes usar micro-ondas
ou ir a funerais… No caso de a mãe estar na Índia ela passará muito
provavelmente a gravidez encerrada na clínica. Se estiver nos EUA será objeto
de vários controlos para se verificar se tudo corre como o contratado.
Nessa espécie de
“patercentrismo” que se abateu sobre este debate centra-se a discussão na
identidade de quem encomenda/paga a criança – se é solteiro, casado, gay, se
está feliz com os bebés… – e desvaloriza-se a criança em si mesma e a sua mãe.
Não deixa de ser significativo
dos tempos que vivemos que Ronaldo seja investigado porque pode ter procurado
pagar menos impostos – note-se que não roubou ninguém, não usou indevidamente
dinheiro dos contribuintes, simplesmente pode ter procurado pagar menos
impostos – e se aceite como legal e moralmente aceitável que tenha filhos
através de um contrato em que as pessoas – no caso as crianças e a sua mãe –
são tratadas como uma mercadoria.
As autoridades irromperam pelo
iate em que Ronaldo veraneava para verificar se a documentação do barco estava
em dia. E a documentação das crianças o que dizia?
Título e Texto: Helena Matos, Observador,
16-7-2017
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