Maria João Avillez
Convinha reparar que na cave e subcave onde
se fabrica o veneno, a temperatura da indignidade e o grau da brutalidade – do
insulto, da falsidade, do ódio – atingem picos que nunca se viram, nem usaram
1. O PSD deve ter
mais ou menos meia hora para escolher entre a decência e o pântano, entre um
amanhã (não é preciso que cante, é só preciso que exista) e a irrelevância,
entre – não tenhamos medo das palavras – a vida e a morte. Há muitas maneiras
de morrer, até estando vivo e por bem menos, grandes partidos se sumiram de vez
da nossa vista e do nosso mundo. Tornaram-se dispensáveis. Entretanto não se
sabe se é pior a fragmentação e a brutalidade a que se assiste, se o deplorável
espetáculo público de uma e outra.
Não, não subestimo Rui Rio,
personagem político que acompanhei profissionalmente por diversas vezes e cuja
“forma mentis”, com o tempo, fui aprendendo a descodificar, mas,
indesmentivelmente, as coisas são o que têm vindo a ser.
De modo que face à infinita
capacidade da natureza humana em nos surpreender na sua possibilidade de erro,
aguarda-se que o novo líder do PSD, na tal meia hora de tolerância, escolha
entre a redenção e o puro fracasso. Dele, ainda antes que a da sua agónica
família política. Ou seria possível montar com tão assinalável êxito uma
“cabala política” contra Feliciano Barreiras Duarte se não houvesse fartura por
onde lhe pegar?
Vinda do próprio PSD (bem
entendido) e do PS (também bem entendido) até um cego vê a cabala, sendo que o
ponto é o próprio Feliciano (deixemos agora de parte os pecados da
universidade) e através do solista Feliciano desagua-se no maestro Rui. Nele e
nas suas escolhas e sabe Deus como se “vê” uma capacidade de liderança através
do seu critério de escolha. De Elina a Malheiro, passando por Negrão e
Barreiras Duarte (não maço mais o leitor com tanta chuva no molhado), o leque é
perturbante, mas o leque foi exclusivamente aberto pelo líder. (e que conta
dará do recado José Silvano?).
Uma coisa é o modus operandi de Rio – caminhada
solitária, escolhas reservadas, um processo de decisão pouco ou nada
partilhado; outra, as péssimas consequências do que tem sido este agir. E mesmo
dando de barato a saudável independência de Rio face à obediência encomendada
da mídia nos seus ataques ao PSD, ou a sua (calculada) indiferença face às “vox
populi”, o líder do PSD tropeçou em todos os erros que produziu. Rio refém ou
líder?
2. Pertenço ao
grupo (maioritário? minoritário? relevante? despiciendo?) que acha que Portugal
reclama pactos de regime, necessitando há muito deles como pão para a boca.
Pactos e compromissos, com prévio trabalho político comum, sobre o que fazer
para que o país acabe com as ficções e as troque por chão sólido debaixo dos
pés. Que o mesmo é pedir que se reforme. E mesmo que a palavra esteja
esburacada e careça de fertilidade do que não se duvida é que ao primeiro
abanão, ao primeiro amuo do futuro presidente do BCE, provavelmente um alemão
mais ortodoxo e menos “jongleur” que o italiano Draghi, a felicidade em que nos
dizem que vivemos esvoaçará como um passarinho na Primavera: por manifesta
impossibilidade de assentar em turistas e tuck-tucks, exportações nunca
suficientes, emprego pouco qualificado, amáveis taxas de juro e cativações sem
vergonha, o país dará de si como os suflês que parecem estanques sem nunca o
serem.
Vejo por isso com bons olhos
iniciativas políticas que sentem à mesma mesa pessoas razoáveis, liderando
partidos distintos, que amem a terra de onde são e a queiram melhor.
Retirando-a do condenatório “balouço-sissó” onde está atarraxada: subindo aos
altos da euforia e da fortuna, para logo cair estrepitosamente no poço da depressão
e da quase miséria. Voltando a subir, voltando a descer… Isso.
3. Tudo indica,
porém que não vai ser desta. Mais “avisamento” político e menos individualismo
teriam levado Rui Rio a: 1) outra forma/fórmula de comportamento, evitando
deixar Assunção Cristas à espera, sem notícias, durante dias: Rio deu-lhe a
terminação e a Costa a parte de leão, erro que nem o querer “fazer diferente”
de Passos suporta ou perdoa; 2) os temas da agenda – descentralização e fundos
comunitários –, mesmo prioritários, teriam que ter sinalizado um calendário com
reformas pesadas onde o presidente do PSD não ficasse nem com a fama nem com o
risível proveito de “bengala útil”. Pode ser que melhore, mas até aqui que
vantagem política útil tirou Rui Rio desta démarche?
4. Nunca me
ocorreria vir a terreiro “defender” a legitimidade de um ex-primeiro ministro
dar aulas, seja ele quem for, não o fiz nem farei, tão destituído de fundamento
me parece o exercício. (que me lembre quando o mesmo se passou com Luís Amado,
ex-ministro da Defesa e dos Negócios Estrangeiros de governos socialistas, não
se ouviu um som). Mas de repente algo me interceptou numa rubrica intitulada
“Do Céu ao Inferno” (Expresso) onde por cima de uma foto de Passos Coelho se
lia esta legenda: “É saudável um ex-primeiro-ministro retomar uma vida ativa na
sociedade. O equívoco passa pelos caminhos seguidos como na polémica que o
envolve ao ser contratado para dar aulas em três universidades e logo como
catedrático convidado”.
O legendador, com solicitude,
informa-nos que acha “saudável” que Passos não fique na cama até ao meio dia ou
não vá pedir esmola para o Largo do Chiado. O pior foi o “equívoco” (de quem?
qual?), os “caminhos seguidos” (por quem? quais?) e “logo” como catedrático.
Quem leia esta breve legenda não duvida que Passos, apesar da sua “saudável”
predisposição para a vida ativa, derrapou num misterioso “equívoco”, cozinhou
uma “polémica”, seguiu “caminhos” ínvios, impôs-se a três universidades que
nunca o convidaram e “logo” como catedrático. Ou seja, a culpa é dele. O que me
interessa aqui não é, porém, a fraseologia da legenda que segue a onda (tudo
menos destoar do ar do tempo quando se trata de Passos Coelho), mas juntar-me à
parte do país que ainda não endoideceu: não é o ex-primeiro-ministro que
precisa de ser defendido dos praticantes da má-fé, sejam eles stars do ódio ou
vomitem fel anonimamente. O país é que necessita de ser defendido (e
pulverizado) contra o veneno que infecta o ar que se respira. Em todo o caso,
convinha reparar que na cave e subcave onde se fabrica o veneno, a temperatura
da indignidade e o grau da brutalidade – do insulto, da mentira, do
ressentimento, do ódio – atingem picos que nunca se viram, não ouviram, nem se
usaram.
4. Dos jornais, um
pequeno flash sobre Portugal, em março de 2018, nove meses após os fogos do
verão passado: a ANACOM diz que 99% das 4.600 pessoas afetadas pelos incêndios
que ainda não têm telecomunicações são clientes da MEO. A Altice defende-se e
diz que a NOS deve repor o serviço.
Ah bom? É tudo uma
questiúncula menor, um trivial passa-culpas entre duas comadres, um
não-problema, fruto “da péssima qualidade da informação portuguesa”? E a
dignidade dessas quatro mil e seiscentas pessoas? E a responsabilidade das empresas
perante elas? E a decência a que têm direito pelo que sofreram e perderam?
Santo Deus.
PS: Caro
leitor, desconvoquei-me. Preciso de ir para o “banco” por algum tempo por
razões exclusivamente familiares e domésticas. Combinei com o treinador estar
aqui mais “de vez em quando” e já não como habitualmente às quartas-feiras.
Espere por mim, que um dia eu volto.
Título e Texto: Maria João Avillez, Observador,
21-3-2018
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