Numa ditadura, não daria para fazer uma passeata pela
democracia. Numa democracia, você pode fazer uma passeata pedindo a ditadura.
Mario Sergio Cortella
Aqueles que não lembram do passado estão condenados a repeti-lo.
George Santayana
Como os fatos que me proponho
a analisar demandam uma explicação um tanto extensa, acho melhor escrever e
publicar por partes, semanalmente, caso contrário ficará muita coisa para ser
lida de uma só vez. Então, ficamos assim combinados: vou liberar durante as
próximas semanas, espero que não muitas, aquilo que for escrevendo em apertada
síntese.
O período político de 1964 a
1984, por uns chamado ditadura militar, por outros, governo autoritário, e, por
outros mais, ditadura branda, tem recebido aprovação, desaprovação,
distanciamento crítico, críticas sinceras, críticas insinceras, apupos e
aplausos.
Dos que apoiam, há aqueles que
só enxergam virtudes e os que acham que os aspectos virtuosos excedem os
aspectos negativos; os contrários acham que só houve coisa ruim ou,
minoritariamente, consideram o balanço negativo ao ponderar os prós e os
contras.
De todas as tendências, as
piores são as sustentadas por fanáticos e mentirosos.
Tentarei fazer uma análise
pessoal, uma análise do conjunto de informações de que disponho por ter lido,
ouvido e vivido a crônica dos acontecimentos históricos daquele período. Sempre
refleti muito sobre o assunto, sem, contudo, ter tido a intenção de me
manifestar publicamente, salvo em conversas com amigos e circunstantes, quando
o tema vem à baila, ocasiões em que sempre procuro repelir as tentativas
solertes de se reescrever a história ou sacar conclusões contra a evidência dos
fatos.
Como preliminar, quero
pontificar que sempre estive do lado oposto ao regime militar, sempre votei na
oposição, cheguei a ser vice-presidente do MDB em Itabuna; vice porque não quis
ser presidente, por falta absoluta de tempo e porque nunca me alinhei
completamente com qualquer partido, seja qual fosse, para, pelo distanciamento,
poder manter meu olhar crítico. Essa posição, inicialmente contrária de forma
radical, foi-se ajustando ao longo do período, e se manteve pendular, no ritmo
em que se sucediam as medidas tomadas pelos diferentes governos militares.
Ditas essas palavras,
começarei a análise dos fatos com a sinceridade que costumo pautar meus pontos
de vista e minha visão crítica de mundo. Posso errar, mas o erro não decorrerá
de insinceridade ou de falta de fidelidade aos fatos, mesmo por que os fatos
estão postos e devidamente registrados.
Minhas palavras dirigem-se
preferencialmente aos jovens, que os velhos ou melhoraram ao longo do tempo
como os bons vinhos ou se comprazem na radicalização do erro.
Para entender fatos históricos
há de se ter em mente um quadro amplo da paisagem histórica que moldura e
interage com tais fatos. Como sempre temo não ser claro, gosto de exemplificar
para ser melhor entendido. Vamos escolher aleatoriamente um fato da história do
Brasil. Vamos pegar a expulsão definitiva dos holandeses, ocorrida ao final do segundo
quartel do Século XVII, mais precisamente em l646. Parece ter sido um fato que
se esgotou em si mesmo. Não parece que a saída dos holandeses não teve maior
consequência que a saída em si mesmo? Ledo engano, amigos. Ao saírem do Brasil
os holandeses levaram para as Antilhas toda a tecnologia do plantio e refino da
cana de açúcar. Como Amsterdã era o centro financeiro do mundo, uma espécie de
Nova Iorque da época, levaram junto os abundantes capitais e o controle das
rotas de distribuição do açúcar na Europa, único mercado para tal especiaria.
Assim, o açúcar antilhano substituiu o brasileiro, levando nosso país à mais
profunda depressão econômica de sua história, que se projetou por mais de cem
anos de apatia econômico-financeira, enquanto os Estados Unidos começavam a
abastecer de comida e outros produtos as Antilhas, cujas terras estavam em sua
quase totalidade voltadas para o cultivo da cana de açúcar. Fácil, portanto
concluir que um mesmo fato histórico, a saída dos holandeses do Brasil, que
levara o Brasil colonial à ruína, dava início ao impulso da economia dos
Estados Unidos, também então colônia.
Essa ligeira digressão foi
necessária para demonstrar como fatos históricos aparentemente autônomos se
imbricam para compor um cenário de consequências mais vastas e mais profundas
que isoladamente parecem não ter.
A meu ver, é necessário que se
coloquem os eventos iniciados em 1964 na paisagem mundial de então. Se assim é,
então vamos lá.
O mundo de então era bi
polarizado; de um lado, a União Soviética e seus satélites, tentando estender
regimes comunistas pelo mundo, do outro, Estados Unidos e seus aliados,
principalmente os europeus, tentando conter esse avanço, a um custo muito alto,
na medida que tinham de mobilizar exércitos de manutenção caríssima para conter
simples guerrilheiros, verdadeira guerra assimétrica em que um colosso militar
de poder de fogo e de destruição gigantescos não tem alvos específicos para
destruir, eis que o inimigo está diluído e infiltrado. Os próprios Estados
Unidos, que já tinham experimentado esse revés na Coreia, a exemplo do que
acontecera com os franceses na Indochina, já tinham o inimigo comunista
instalado em seu próprio quintal, a Cuba fidelista que impusera uma derrota
humilhante aos invasores da Baía dos Porcos apoiados pela CIA.
Havia uma terceira posição, a
dos chamados países não-alinhados, na verdade alinhadíssimos com os comunistas
ou praticando política pendular para levar vantagem. Aí militavam a Indonésia,
o Egito, a Índia e vários outros, compondo aquilo que o pensador e historiador
britânico Paul Johnson denominou a Geração Bandung, em sua preciosa obra Tempos
Modernos, para mim a melhor história do século vinte, cuja leitura recomendo
fortemente. Em Bandung, capital da Indonésia, dominada por Sukarno, ocorreu a
primeira reunião dos ditos “não alinhados”.
A queda de um país nas garras
do comunismo poderia gerar a queda de outros países periféricos, como ocorrera
na península coreana e no Vietnam. Face a tal possibilidade, os Estados Unidos
e seus aliados concentrados na Otan desenvolveram a Teoria do Efeito Dominó, ou
seja, evitar a qualquer custo a queda de um país, evento que poderia implicar a
queda de outros mais. Para isso, qualquer aliado seria bem-vindo, mesmo que,
contrariamente aos postulados democráticos do chamado Mundo Livre, significasse
conviver com ou cortejar um regime de exceção.
É justamente nesse quadro que
se insere a luta para a preservação dos países da América Latina como aliados,
especialmente de um país com as dimensões e a importância do Brasil. Isso
justifica a tolerância e a aceitação pelos Estados Unidos e aliados dos
diversos regimes de exceção implantados na região como tentativa de deter o
avanço do comunismo. Dentro daquilo que os pensadores de geoestratégia chamam
de realpolitik, os regimes de exceção
não seriam hostilizados se fosse o preço a ser pago para a contenção do avanço
do totalitarismo comunista.
A propaganda da superioridade
das maravilhas do comunismo esbravejada, dia e noite, pela Rádio de Moscou, em
revistas e livros, contaminava as escolas, boa parte do professorado, a
esquerda acadêmica, os sindicatos e, acima de tudo, os jovens; os planos
quinquenais lançados pelos países comunistas vendiam a ideia que ganhariam a
batalha da produção e que o planejamento econômico suplantava as forças do
livre mercado; os partidos comunistas se agigantavam em países importantes como
França e Itália e o estatismo trabalhista engolfava a Inglaterra; a União
Soviética assombrava o mundo ao lançar a primeira nave e o primeiro astronauta
ao espaço sideral. Tudo isso dava uma certeza à esquerda que os Estados Unidos,
atolados no Vietnam, seriam sobrepujados. Tudo era uma questão de tempo.
Esse é o quadro mundial em que
se insere a tomada do poder pelos militares, no Brasil, em 1964
Negar tal moldura histórica
não passa de desfaçatez, sonsidão, ou pura estratégia de reescrever a história
para adequá-la ao discurso solerte das esquerdas, cujo objetivo é dizer aos
jovens de hoje que eles, os jovens de ontem, pegaram em armas com o puro, único
e altruísta propósito de combater a ditadura para reinstalar no Brasil a
democracia que, no fundo, abominavam. Mas, não nos precipitemos, o momento da
análise dos motivos que levaram uma parte da esquerda à luta armada chegará.
Dito isto, na próxima semana
continuarei essa saga pela análise da situação política reinante no Brasil, a
resistência democrática ao avanço do comunismo, a intervenção militar com o
mais amplo apoio da sociedade e os fatos que levaram essa intervenção, que se
anunciava cirúrgica e breve, a se transformar em uma ditadura, embora limitada
ao campo da política e da difusão de ideias, pois, contrariamente ao que ocorre
com as ditaduras totalitárias, a economia, os costumes, o culto religioso, o
pátrio poder e as instituições civis foram deixadas como eram, em regime de
plena ou quase plena liberdade.
Até a próxima sequência e um
bom domingo para todos.
Título e Texto: Pedro Frederico Caldas, 7-9-2017
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