Goethe
Não permito que nenhuma reflexão filosófica me tire a alegria
das coisas simples da vida.
Freud
Pedro Frederico Caldas
Nascido José Emerenciano, foi
reduzido a Zé, mas lhe foi incorporado ao nome o objeto de seu artesanato,
fazedor de fifó que era, tornando-se Zé Fifó. Morava em casa de pau a pique,
chão batido, fincada a uma légua de pequena cidade do sertão baiano. Zé Fifó,
voz profunda e grave, de falar vagaroso e monocórdio, gestos suaves, criou oito
filhos, sobrados de quatorze gravidezes, duas findadas por abortos naturais,
quatro vingadas, mas de resultas abatidas por doenças, endemias e acidente
ofídico.
Sua mulher, dona Escolástica
Avarb, loura, olhos azuis, pele crestada pelo sol do sertão, de certo nível de
conhecimento, chamada carinhosamente Cacá, alfabetizou toda a prole, sem
descurar de outros deveres do lar e de uma pequena horta. Estoica, caráter
forte, nunca murmurou uma queixa. Cinquenta e cinco anos de convivência
cimentaram um casamento que parecia ter sido ontem. Filhos e filhas migraram,
um a um, para São Paulo, onde, bem ou mal, tinham mais conforto que os pais. Um
deles, segundo notícias em tinta e papel, vindas de tempos em tempos, estava muito
bem, virara sindicalista, não precisava bater ponto, tinha casa e carro e vivia
de alagodaça.
Zé Fifó, por todas essas
injunções, vivia para o trabalho, dividindo-se no fabrico manual de fifós,
feitos por encomenda ou para serem vendidos na feira de Sequeiro Grande, no
cultivo de pequena horta e nas esporádicas diárias de enxada em fazendas das
cercanias. Tinha gostos que amenizam a vida: a fumaça de vinte cigarros que lhe
visitavam diariamente os pulmões e algumas doses de cachaça escorregadas goela
abaixo com um estalar de língua, limitadas em número por fraqueza de bolso. Com
esses dois pequenos prazeres, amaciava a labuta pela existência.
Toda semana ia à feira e à
venda de Mané Chorão, em Sequeiro Grande, de caju em caju frequentada por um
moço da capital, homem de garbo, anel de grau no dedo, óculos de pensador,
proprietário de terras na região, por todos chamado doutor Odilardo, que falava
bonito de se ver. O homem sabia de filosofia, de política, de economia, de
história e até de previsão do tempo, segundo se comentava. Quando falava, todo
mundo prestava atenção. Desancava o governo e os políticos. Dizia sempre que a
pobreza era grande porque o governo roubava tudo em impostos e não deixava as
pessoas trabalharem em paz. E sempre afirmava que todos precisavam abrir os
olhos contra o governo e os políticos e nunca esquecia de arrematar, com seu
palavreado formoso, que “o preço da liberdade era a eterna vigilância”.
Numa dessas feitas, pousou a
mão no ombro de Zé Fifó – quanta honra! -, e disse: seu Zé, o senhor sabia que
o maço do seu cigarro tem mais imposto que fumo e a graduação tributária é
maior que graduação alcoólica da pinga que alegra sua vida? Zé Fifó perguntou a
ele por que tanta maldade do governo. Com um sorriso nos lábios, de serena
sapiência, respondeu que para os políticos eram “produtos supérfluos”.
A partir daí, Zé Fifó passou a
entender o porquê da dificuldade que sempre sentia para a manutenção daqueles
dois únicos prazeres, só comparáveis às notícias e às músicas trazidas ao seu
lar humilde pelo rádio de pilha de que Cacá nunca abrira mão. Bem o moço não
saiu, Antônio Bicão disse “que ele ainda ia ser preso por ser um comunista que
falava mal do governo”, no que Pimentel, juiz de paz, homem de muita
ilustração, atalhou “qual preso qual nada, esse homem é um liberal em economia,
quase um libertário”. Zé Fifó, que a tudo observa, juntou libertário com
libertino e pensou: “fedeu! Pimentel não precisava ofender homem tão distinto
daquele jeito. Que homem sabido aquele doutor Odilardo! Que Deus o crie para o
bem”.
Nos momentos de descanso e de
doce ternura, sentados na sala, ele pitando cigarro e sorvendo, devagarinho, a
gostosa pinga, ficavam ouvindo as notícias, ou ouvindo músicas. Gostavam da
dupla Zé Rico e Milionário, e Zé Fifó ficava arrepiado ao ouvir Luiz Gonzaga
cantar Riacho do Navio e a voz de Dorival Caymmi versar que é “doce morrer no
mar”. Sabiam de cor e salteado todas as letras, que acompanhavam em duo fazendo
a primeira e a segunda voz, ela de agudos sustentáveis, ele de graves
aveludados. Em noite de lua grande, sentavam na soleira da porta e cantavam as
músicas prediletas, mas sempre encerravam a cantoria com Luar do Sertão. Era
uma distração só, uma felicidade bendita. Para ele, o olhar de Cacá decifrava
todos os mistérios do universo. Se o mundo tivesse alguma verdade última,
estava revelada no olhar daquela mulher de têmpera serena. Adiava, por
cinquenta e cinco anos, dizer quanto ela significava para ele, sem saber que
ela também estava em mora, por igual trato de tempo, em lhe dizer a mesma
coisa. O acanhamento e o recato eram obstáculo à confissão de uma verdade de
ambos sabida. O mundo, para eles, não carecia de explicação. Aquele amor
simples e infinito era a explicação do mundo. Eram gente de fé: um Padre Nosso
e um sinal da cruz sempre antecediam uma noite bem dormida e tranquila.
Nunca souberam o que era crise
porque nunca conheceram fartura. Se tivessem que inventariar os bens listariam
aquele pequeno trato de terra, de uma tarefa, a casinha de três quartos,
banheiro ao fundo, separado, tudo em adobe e chão batido, copos de vidro de
azeitona, canecas de lata de massa de tomate, pratos de alumínio, mesa e camas
de madeira cerrada, colchões de crina, talha para água de beber, fogão a lenha,
cacimba, alguns fifós, rádio de pilha e, o mais importante, quietação, bem que
nunca lhes faltara.
Tinham um sonho, nunca
realizado, de conhecer o mar e a Cidade Maravilhosa, cujo hino, do mesmo nome,
cantavam sempre. Mas o grande acontecimento de suas vidas fora visitar tia
Alzirinha, nos seus cem anos, viagem contada em prosa e verso por Cacá, principalmente
quando, depois de cento e dez quilômetros em carroceria batida de caminhão,
alcançaram a moderna e faceira cidade de Piritiba, domínio do clã dos Borges,
gente muito festejada naquelas bandas, onde tomaram o ônibus da Águia Branca,
de cadeira acolchoada, chofer engravatado, macio feito passo de garça, até a
cidade de Itabuna, verdadeira capital, toda verdejante, com rio grande passando
no meio, e, encanto dos encantos, feitas as contas do numerário recebido de
presente dos filhos, patronos daquela viagem, somado, aditado e subtraído,
levaram tinha Alzirinha para comer no Santu Bulle feijoada aromática e
saborosa, arrumada no prato como coisa de presépio, carne de sol com feijão
verde e, prenda das prendas, sarrabulho de primeira, tudo com molho de pimenta,
para não falar do gole inaugural de uma cerveja gelada, jamais tomada por Zé
Fifó, tudo servido por povo gentil e sorridente, como se eles, tão simples,
fossem lordes de contos de fada. Aquilo, sim, é que era vida, viajar de ônibus
da Águia Branca e comer sarrabulho no Santu Bulle, repetia Cacá, toda orgulhosa
e catita, quando relatava o grande feito, vezes inúmeras, aos clientes da feira
de Sequeiro Grande.
A crise que o rádio vinha
anunciando, captada de entrevistas e discurseiras políticas, não lhes dizia
respeito. O saque à Petrobrás parecia mais complicação de um mundo fora de seu
alcance, coisas de um universo paralelo. Para eles, Banco Central não passava
de um lugarejo para além de Brejo Grande. Quando ouvia dizer que alguém fora
indicado para ministro da economia, vinha sempre aquela ideia furtiva que a
melhor pessoa seria sua Cacá, que ninguém sabia fazer economia como ela.
Chuleava, caseava e pregueava como ninguém, e, com ferro de engomar batido a
fole, passava colarinho com aprumo e perfeição. Quando era um pedacinho de
roupa, botava uma brasa na colher para economizar no carvão.
O mundo girava pelo rádio:
presidente entrava, presidente saia, homem ia à lua, gente morria, até imortal
da academia, militar tomava o poder, militar caía, Fidel dizia que ia salvar
Cuba, o povo de Cuba fugia. Todas essas notícias de terras distantes,
radiofonizadas, em nada alterava a vida despojada que levavam. Não saíam de seu
canto. O gorjeio dos pássaros, as árvores frutíferas, a horta e o banho de
córrego eram distrações bastantes. O cigarro e a cachaça eram para Zé Fifó
mimos de uma vida despojada. Cacá gostava de cafezinho e lhe servia cachacinha
e torresmo com sorriso de satisfação pois bem sabia que era uma prenda para o
seu querido.
Um belo dia, ou melhor, uma
bela noite, o repórter disse que iam falar em cadeia de rádio e televisão o
Ministro da Fazenda e o Presidente do Banco Central. As autoridades deitaram
falação sobre “as medidas macroeconômicas para debelar a grave crise nacional”
e prometiam, solenes, que “as despesas seriam cortadas e a moral pública,
restaurada”. Aí lhe vinha aquele
pensamento furtivo: Cacá faz isso melhor que ninguém. Então, Zé Fifó perguntou
quem era que criava tanta crise e Cacá respondeu de pronto que só podia ser o
governo, que quem trabalha não atrapalha. Nesse exato momento, entra de novo o
famoso repórter para anunciar que dentre as medidas a serem tomadas seriam
aumentados os impostos sobre produtos supérfluos. Atônito, rubro, quase
incrédulo, Zé Fifó se levanta, sob o olhar atento e espantado de Cacá, lábios
trêmulos, controle perdido, aponta o dedo em riste para o rádio e dá um brado
retumbante: TÔ LASCADO!
Um bom domingo para todos.
Título e Texto: Pedro Frederico Caldas
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De compadres e de alucinações
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